terça-feira, 19 de julho de 2011

Misticismo X Racionalidade: A Religião na Idade Moderna

É um pensamento comum em nosso tempo o de que o retorno ao estudo dos clássicos gregos e latinos, nos últimos séculos da Idade Média, com o consequente despertamento cultural e o surgimento dos ideais humanistas e, posteriormente, racionalistas, tenham colocado o mundo em uma nova rota de desenvolvimento científico, valorização da razão, dos direitos humanos, liberdade e igualdade. Nesta perspectiva, a Reforma teria sido apenas mais um movimento de emancipação que acompanhou as tendências da época.

Um estudo cuidadoso da história, no entanto, nos mostra que embora o retorno ao estudo dos clássicos gregos e latinos tenha dado um impulso a Reforma por possibilitar a leitura do Novo Testamento em sua língua original, o grego, o desenvolvimento científico (a partir da descoberta do método científico), a valorização da razão, direitos humanos, liberdade e igualdade são valores que provêm antes do retorno à religião bíblica durante a Reforma do que do mero estudo dos clássicos. Eu não pretendo apenas afirmar isto aqui. Eu gostaria de convidar aqueles que me lêem a um passeio pela história dentro de nossas limitadas possibilidades.

Antes de iniciarmos nosso passeio, convém abrir parênteses para enfatizar uma diferença crucial existente entre a religião bíblica e qualquer outra forma de religão, pensamento ou filosofia de vida. (Isto precisa ser dito, creiamos ou não na Bíblia como uma fonte confiável de informação,' para que os eventos históricos referentes a Reforma possam ser entendidos.) A ênfase de todos os tipos de religiões que não têm a Bíblia como único fundamento em questões de fé é posta sobre o que o homem pode realizar para alcançar benefícios, vida após a morte, iluminação ou o que seja. Seja por meio de sacrifícios, boas obras, esforços, peregrinações, meditações, etc. Filosofias de vida diferentes, não importa quão diferentes entre si, sempre se centralizam em coisas que os seres humanos podem realizar e experimentar. A religião bíblica (aquela que se baseia unicamente no que está escrito na Bíblia e a usa como seu próprio intérprete) coloca ênfase no que Deus faz pelos seres humanos, assim os sacrifícios de cordeiros do Antigo Testamento apontavam para "o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo" (João 1:29). Na perspectiva bíblica, quando o ser humano se alienou de Deus, no princípio de sua história, perdeu sua capacidade de amar a Deus e de ser genuinamente bom, uma vez que Deus seria a fonte do bem no homem e do funcionamento de todas as leis do Universo. Por causa disso, o ser humano passou a ter duas tendências: uma que o faz ter uma natureza religiosa e desejar o bem, boas coisas e até realizar várias delas, e outra que o faz rebelar-se contra Deus e ser egoísta (tendência a degradação). Um texto que declara isto inequivocamente é o seguinte: "Pois não faço o bem que quero, mas o mal que não quero, esse pratico. Ora, se eu faço o que não quero, já o não faço eu, mas o pecado que habita em mim. Acho então esta lei em mim, que, mesmo querendo eu fazer o bem, o mal está comigo. Porque, segundo o homem interior, tenho prazer na lei de Deus; mas vejo nos meus membros outra lei guerreando contra a lei do meu entendimento, e me levando cativo à lei do pecado, que está nos meus membros." Romanos 7:19-23.

Segundo a religião bíblica, o homem pode ser ético, estabelecer bons ideiais para si mesmo e os outros, mas é incapaz de, alienado de Deus, vencer completamente seu egoísmo. A solução bíblica para o problema humano está no que Deus pode fazer pelo homem quando este permite: "Porque a lei do Espírito da vida, em Cristo Jesus, te livrou da lei do pecado e da morte. Porquanto o que era impossível à lei, visto que se achava fraca pela carne, Deus enviando o seu próprio Filho em semelhança da carne do pecado, e por causa do pecado, na carne condenou o pecado para que a justa exigência da lei se cumprisse em nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito. ... Porquanto a inclinação da carne é inimizade contra Deus, pois não é sujeita à lei de Deus, nem em verdade o pode ser". "Pois o amor de Cristo nos constrange, porque julgamos assim: se um morreu por todos, logo todos morreram; e ele morreu por todos, para que os que vivem não vivam mais para si, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou. ...Pelo que, se alguém está em Cristo, nova criatura é; as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo. Mas todas as coisas provêm de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por Cristo, e nos confiou o ministério da reconciliação; pois que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não imputando aos homens as suas transgressões; e nos encarregou da palavra da reconciliação. De sorte que somos embaixadores por Cristo, como se Deus por nós vos exortasse. Rogamo-vos, pois, por Cristo que vos reconcilieis com Deus. Àquele que não conheceu pecado, Deus o fez pecado por nós; para que nele fôssemos feitos justiça de Deus." (Romanos 8: 2-4 e 8; 2 Coríntios 5: 14-15, 17-21.)

No ponto onde paramos, no post anterior, o mundo ocidental era um mundo místico, religioso, sem desenvolvimento científico, quase completamente estagnado em conhecimento, sem respeito a liberdade ou direitos humanos, mas ainda era um mundo centralizado no homem. A salvação dos homens estava centralizada na autoridade da Igreja, assumida pelo papa, para obter aprovação da divindade os homens realizavam orações e jejuns dedicados aos santos (seres humanos mortos), realizavam peregrinações e pagavam indulgências, em suma, confiavam nas próprias obras, na intercessão de sacerdotes e santos. Pagando uma boa soma em dinheiro muitos sentiam-se livres para viverem de acordo com seus instintos. Exemplares da Bíblia, em latim e grego, eram muito raros mesmo para os sacerdotes que, normalmente não a liam, o povo comum não tinha qualquer acesso a eles. É nesse contexto histórico que encontramos Lutero precisamente antes de começar a Reforma:

"Ele encontrou no convento uma Bíblia presa por uma corrente, e a esta Bíblia acorrentada ele retornava constantemente. Ele tinha apenas pouca compreensão da Palavra, todavia era seu mais agradável estudo. ... Parece que cerca desta época ele começou a estudar as Escrituras em suas línguas originais, e a lançar o fundamento do mais perfeito e útil de seus labores - a tradução da Bíblia. ... Queimando com o desejo de alcançar aquela santidade em busca da qual ele entrara no claustro, Lutero cedeu a todo o rigor de uma vida ascética. Ele se esforçou para crucificar a carne por jejuns, mortificações e vigílias. Encerrado em sua cela, como em uma prisão, ele lutava incessantemente contra os pensamentos enganosos e as más inclinações de seu coração. Um pequeno pão e peixe eram frequentemente seu único alimento. ...Lutero não encontrou na tranquilidade do claustro e na perfeição do monastério aquela paz de mente que tinha procurado ali. Ele desejava ter a segurança de sua salvação: esta era a grande necessidade de sua alma. Sem ela, não havia repouso para ele. Mas os temores que o tinham agitado no mundo perseguiam-no em sua cela. Não, eles tinham aumentado. ... O senso de sua pecaminosidade pertubava-o; a perspectiva do juízo de Deus enchia-o de temor. Mas no próprio momento em que estes terrores tinham alcançado seu ponto mais alto, as palavras de S. Paulo, que já o tinham impressionado em Wittenberg, "o justo viverá pela fé" [Galátas 3:11], retornaram forçosamente à sua memória e iluminaram sua alma como um raio do Céu." History of the Reformation of the Sixteenth Century, Livro 2, capítulos 3 e 6.

Acreditando que o único modo de um ser humano ser justificado diante de Deus é pela fé no que Cristo fez e faz por ele e que a única autoridade em matéria de fé são as Escrituras do Antigo e Novo Testamentos, Lutero lançou a base da libertação da escravidão espiritual do homem pelo homem, do estudo das Escrituras de cada pessoa por si mesma (e não através da interpretação dos sacerdotes) e da igualdade de todos os homens perante Deus.

Segundo D'Aubigné:

"O Cristianismo não é um simples desenvolvimento do Judaísmo. Diferente do papado, ele não objetiva confinar o homem nas apertadas faixas de ordenaças exteriores e doutrinas humanas. O Cristianismo é uma nova criação; ele toma posse do homem interior e tranforma-o nos mais profundos princípios de sua natureza humana, de modo que o homem não mais requer que outro homem imponha regras sobre ele; mas, ajudado por Deus, ele pode de si mesmo e por si próprio distinguir o que é verdadeiro e fazer o que é correto. Ao levar a humanidade para aquela idade madura que Cristo lhe adquiriu e libertá-la da tutela em que Roma a tinha mantido por tanto tempo, a Reforma deveria desenvolver o homem inteiro; e enquanto regenera seu coração e sua vontade pela Palavra de Deus, ilumina seu entendimento pelo estudo de conhecimento profano e sagrado. ... 'Ocupem-se com as crianças,' continua Lutero, ainda dirigindo-se aos magistrados; 'pois muitos pais são como avestruzes; eles estão endurecidos para com seus pequenos, e satisfeitos com ter posto o ovo, eles não se preocupam com nada depois disto. A prosperidade de uma cidade não consiste meramente em acumular grandes tesouros, em construir fortes muros, em erigir esplêndidas mansões, em possuir brilhantes exércitos. Se homens loucos caem sobre ela, sua ruína será apenas maior. A verdadeira riqueza de uma cidade, sua segurança e sua força, é ter cidadãos instruídos, sérios, dignos e bem-educados. E a quem devemos culpar porque existem tão poucos no presente, a não ser vocês magistrados, que têm permitido que nossa juventude cresça como árvores em uma floresta?' " History of the Reformation of the Sixteenth Century, Livro 10, capítulo 9.

Lutero e outros reformadores aprenderam que a religião bíblica requer um "culto racional" (Romanos 12:1). A Reforma foi o movimento que, no final da Idade Média, lançou os fundamentos para a valorização do ser humano como um ser racional, livre, independente e capaz de pensar por si mesmo. O renascimento da cultura grega e latina sozinho não fez isto, pois os cultos daquela época não ousavam questionar ou tentar modificar a estrutura estabelecida (ver http://www.iep.utm.edu/humanism/ no item "Erasmus"), os primeiros humanistas eram cristãos, mas a ruptura entre cristianismo e humanismo se deu durante o Iluminismo: "O Iluminismo da metade do século dezoito na Europa trouxe uma separação entre instituições religiosas e seculares que exemplificaram uma crescente fissura entre cristianismo e humanismo. A dependência em declínio dos fundamentos religiosos por parte de filósofos levou a experiências em vários planos políticos e sociais dos últimos poucos séculos ao redor do mundo, incluindo Comunismo Internacionalista, Socialismo Nacional, Facismo, Anarquismo, Teocracia, Caesaropapismo e várias comunidades utópicas. Cristãos participaram em todos estes movimentos em vários graus como indivíduos e institucionalmente, como participaram deístas e materialistas (ver http://en.wikipedia.org/wiki/Christian_Humanism).

O humanismo atual, um humanismo inclusivo, procura abraçar a humanidade toda com valores que foram trazidos à luz a partir da religião bíblica pela Reforma, com a diferença de que ele procura estabelecer estes valores à parte do Deus da Bíblia.

Considerando o método científico, por exemplo, as primeiras idéias para ele vieram de homens como Da Vinci, Galileu e Newton, os quais foram influenciados pela Bíblia e buscaram revelar a sabedoria do Deus bíblico através da Natureza que criam que Ele criou. Eles se deram conta do papel que a matemática tem no funcionamento da Natureza, o que para eles era perfeitamente natural, pois a Bíblia apresenta um Deus que governa segundo leis bem estabelecidas.

"A sabedoria é filha da experiência. A experiência jamais engana; e os que se lamentam dos seus logros deveriam antes lamentar-se da sua ignorância porque pedem à experiência aquilo que está para lá dos seus limites. Em contrapartida, pode o juízo enganar-se sobre a experiência; e para evitar o erro não há outra via senão reduzir todos os juízos a cálculos matemáticos o servir-se exclusivamente da matemática para entender e demonstrar as razões das coisas que a experiência manifesta. A matemática é o fundamento de toda a certeza." Leonardo da Vinci – apud in (ABBAGNANO 1970, Origens da Ciência, p. 9) (http://filosofiageral.wikispaces.com/A+Revolu%C3%A7%C3%A3o+Cient%C3%ADfica)

"A Filosofia [Física] está escrita neste grandioso livro que está sempre aberto à nossa contemplação (refiro-me ao universo), mas que não pode ser entendido sem que primeiro aprenda-se a língua, e conheçam-se os caracteres com os quais está escrito. Ele está escrito em linguagem matemática, e seus caracteres são triângulos, círculos, e outras figuras geométricas sem as quais é humanamente impossível entender sequer uma de suas palavras; sem estes
[caracteres] fica-se a vagar por um escuro labirinto." (Il Saggiatore, 1623, Galileo Galilei)

"Newton foi levado acima de tudo por argumentos derivados do estudo do universo, embora sua mente profundamente pensadora extraiu outros argumentos também. Este grande homem cria (Opticks III. Book. Query 31) que o movimento dos corpos celestiais demonstrava a existência Daquele que governa-os. Seis planetas - Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter e Saturno - revolvem-se ao redor do Sol. Todos os planetas rotacionam na mesma direção em órbitas que são mais ou menos concêntricas. (Não obstante, existem outros corpos, os cometas, que seguem totalmente diferentes órbitas, movendo-se em todas as direções e em cada região do Céu.) Newton acreditava que tal uniformidade de movimento só podia resultar da vontade de um Ser supremo." Derivation of the laws of motion and equilibrium from a metaphysical principle, by Pierre Louis Moreau de Maupertuis (http://en.wikisource.org/wiki/Derivation_of_the_laws_of_motion_and_equilibrium_from_a_metaphysical_principle).

Newton também escreveu um livro sobre as profecias de Daniel e Apocalipse, Observations upon the
Prophecies of Daniel,and the Apocalypse of St. John, in Two Parts
, que pode ser obtido no seguinte site http://www.isaacnewton.ca/daniel_apocalypse/

Em seu artigo acima e no seguinte, Accord between different laws of Nature that seemed incompatible, Maupertuis deduz o princípio da ação mínima, segundo ele "ninguém pode duvidar de que tudo é governado por um Ser supremo que tem imposto forças sobre os objetos materiais, forças que mostram seu poder, tal como ele destinou estes objetos a executar ações que demonstram sua sabedoria. A harmonia entre estes dois atributos é tão perfeita, que indubitavelmente todos os efeitos da Natureza poderiam ser derivados de cada um tomado separadamente. Uma cega e determinística mecânica segue os planos de um intelecto perfeitamente claro e livre." O princípio metafísico de Maupertuis do qual ele deriva seu princípio da ação mínima (um princípio de otimização) tem como base a crença de que Deus faz as coisas com sabedoria e perfeição e se origina da declaração bíblica: "E viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom." Gênesis 1:31.

Mesmo Freeman Dyson declarou: "A ciência ocidental nasceu da teologia cristã. Provavelmente não é um acidente que a ciência moderna tenha crescido explosivamente na Europa cristã e deixado para trás o resto do mundo. Milhares de anos de debates teológicos nutriram o hábito do pensamento analítico capaz de ser aplicado à análise de fenômenos naturais." Review of Feynman and of Polkinghorne "Belief in God in an Age of Science", 1998.

Na realidade, o Iluminismo e Racionalismo do século 18, que romperam com o Cristianismo, derivaram seus ideais da Reforma, como Russel também acreditava: "Russel argumenta que o iluminismo foi, em última instância, nascido da reação protestante contra a contra-reforma católica, quando as visões filosóficas dos últimos dois séculos cristalizaram-se em uma visão de mundo coerente. Ele argumenta que muitas das visões filosóficas, tais como afinidade pela democracia contra a monarquia, originaram-se entre os protestantes no início do século 16 para justificar seu desejo de romper com o papa e a Igreja Católica. Embora muitos destes ideais filosóficos tenham sido acolhidos por católicos, Russel argumenta, no século 18 o Iluminismo foi a manifestação do princípio do rompimento que começou com Martinho Lutero." Age of Enlightenment citando Russell, Bertrand. A History of Western Philosophy. p492-494." (ver http://en.wikipedia.org/wiki/Age_of_Enlightenment#cite_note-3)

A religião bíblica, é, na verdade, uma religião raramente praticada em nosso mundo. Ela foi praticada pelos ancestrais do povo de Israel (Abrãao, Isaque e Jacó) e apenas muito pouco tempo pelo próprio povo de Israel, que, na maior parte das vezes, viveu em rebelião contra seus princípios. Os primeiros cristãos viveram de acordo com ela, mas seus seguidores deram origem a Igreja Católica da Idade Média. Os primeiros protestantes deram lugar a descendentes que já não viviam de acordo com os princípios destes. Desta forma, os ideais que deram origem ao moderno humanismo, a saber, ética, racionalidade, democracia e direitos humanos (http://www.iheu.org/adamdecl.htm), além do método científico, tiveram origem nos princípios extraídos da religião bíblica, os ideais foram mantidos, mas o Deus que motivou a existência deles foi deixado de fora.