quarta-feira, 30 de março de 2011

Misticismo X Racionalidade: A Religião na Idade Média

O início da Idade Média foi delimitado pela queda do Império Romano Ocidental. Os povos germânicos que invadiram Roma deram origem às nações da Europa. Daquele império restou a Igreja Cristã que se tornou a Igreja Católica Apostólica Romana. A mudança de um grupo de pessoas que praticava o amor fraternal e era pobre em bens materiais e disposto a sacrificar a própria vida em favor da mensagem que pregava para uma instituição rica e poderosa com força para se impor sobre o mundo ocidental foi lenta e gradual. Começou quando a perseguição contra os cristãos deu lugar a tolerância, com o Édito de Milão, por Constantino, em 313 d.C. A igreja começou a fazer concessões em seus ensinos para se acomodar aos novos adeptos do paganismo à medida em que o cristianismo se tornava a religião oficial do império. A adoração de imagens que antes representavam deuses pagãos começou a fazer parte dos cultos, com a transmutação daquelas em santos cristãos. A mediação dos sacerdotes e dos santos começou a substituir a mediação de Jesus Cristo e a salvação pelas boas obras e ofertas para a igreja passaram a competir com a salvação pela fé em Cristo. O bispo de Roma ganhou preeminência sobre os outros bispos até se tornar o papa, cabeça de todas as igrejas, e a doutrina da infalibilidade papal foi aos poucos ganhando forma. Entre as atribuições dos sacerdotes estava a de serem os únicos a terem o direito de interpretar as Escrituras e estas só eram traduzidas para o latim e mantidas inacessíveis para o povo comum. Os cristãos que não aderiram às mudanças passaram a ser perseguidos e a Igreja foi se tornando cada vez mais poderosa ao impor sua política religiosa sobre o mundo medieval. Muito do conhecimento greco-romano foi sendo perdido ao longo dos séculos (aproximadamente 10 séculos). Não é por pouco que esta época ficou conhecida como a Idade Escura ou das Trevas.

Profecias bíblicas (nos livros de Daniel e Apocalipse) indicavam um longo período de apostasia e perseguição no futuro, ao final do domínio romano. Um dos apóstolos, Paulo, referindo-se a estas profecias afirmara: "Eu sei que depois da minha partida entrarão no meio de vós lobos cruéis que não pouparão o rebanho, e que dentre vós mesmos se levantarão homens, falando coisas perversas para atrair os discípulos após si." "Ora, quanto à vinda de nosso Senhor Jesus Cristo e à nossa reunião com ele, rogamos-vos, irmãos, que não vos movais facilmente do vosso modo de pensar, nem vos perturbeis, quer por espírito, quer por palavra, quer por epístola como enviada de nós, como se o dia do Senhor estivesse já perto. Ninguém de modo algum vos engane; porque isto não sucederá sem que venha primeiro a apostasia e seja revelado o homem do pecado, o filho da perdição, aquele que se opõe e se levanta contra tudo o que se chama Deus ou é objeto de adoração, de sorte que se assenta no santuário de Deus, apresentando-se como Deus." (Atos 20:29-30 e 2 Tessalonicenses 2:1-4.)

Os capítulos 2, 7 e 8 do livro de Daniel apresentam uma sucessão de quatro impérios mundiais: Babilônia, Medo-Pérsia, Grécia e Roma. Falam da divisão do último, Roma, e do surgimento de um poder perseguidor a partir deste. "Enquanto eu olhava, eis que o mesmo chifre fazia guerra contra os santos, e prevalecia contra eles". " Grande será o seu poder, mas não de si mesmo; e destruirá terrivelmente, e prosperará, e fará o que lhe aprouver; e destruirá os poderosos e o povo santo. Pela sua sutileza fará prosperar o engano na sua mão; no seu coração se engrandecerá, e destruirá a muitos que vivem em segurança; e se levantará contra o príncipe dos príncipes; mas será quebrado sem intervir mão de homem." (Daniel 7:21, 8:24-25.) O mesmo poder reaparece nas profecias de Apocalipse 12, 13 e 17: "Também lhe foi permitido fazer guerra aos santos, e vencê-los; e deu-se-lhe autoridade sobre toda tribo, e povo, e língua e nação." "Então ele me levou em espírito a um deserto; e vi uma mulher montada numa besta cor de escarlata, que estava cheia de nomes de blasfêmia, e que tinha sete cabeças e dez chifres. A mulher estava vestida de púrpura e de escarlata, e adornada de ouro, pedras preciosas e pérolas; e tinha na mão um cálice de ouro, cheio das abominações, e da imundícia da prostituição; e na sua fronte estava escrito um nome simbólico: A grande Babilônia, a mãe das prostituições e das abominações da terra. E vi que a mulher estava embriagada com o sangue dos santos e com o sangue dos mártires de Jesus. Quando a vi, maravilhei-me com grande admiração. Ao que o anjo me disse: Por que te admiraste? Eu te direi o mistério da mulher, e da besta que a leva, a qual tem sete cabeças e dez chifres." (Apocalipse 13:7 e 17:3-7)

Embora não seja o objetivo aqui entrar em detalhes destas profecias (o que poderá ser feito mais tarde), pode ser visto, desta pequena amostra do que dizem estas profecias, que estava predito o surgimento de um grande poder apóstata, no final do império romano, que exerceria um domínio entre as nações e perseguiria os que fossem fiéis a Deus.

Entre aqueles que procuraram permanecer no cristianismo original estavam os valdenses.

"Desde o início, os valdenses afirmavam o direito de cada fiel de ter a Bíblia em sua própria língua, sendo esta Bíblia a fonte de toda autoridade eclesiástica.

Os valdenses reuniam-se em casas de família ou mesmo em grutas, clandestinamente, devido à perseguição da Igreja Católica. Celebravam a Santa Ceia uma vez por ano. São considerados como uma igreja pré-reformada. Negavam a supremacia de Roma, rejeitavam o culto às imagens como idolatria e eram guardadores do sábado bíblico.
" valdenses

Muitos morreram queimados na estaca ou por meio de outras torturas durante este tempo, na verdade, qualquer um que estivesse em desacordo com as idéias que a Igreja defendesse e, principalmente, se ameaçasse sua supremacia.

D'Aubigne, em sua "História da Reforma no Décimo Sexto Século" apresenta um pouco as condições da Europa na época anterior a Reforma:

"As nações da Cristandade não mais olhavam a um Deus santo e vivo para o livre dom da vida eterna. Para obtê-la, elas eram obrigados a recorrer a todos os meios que uma imaginação supersticiosa, temerosa e alarmada poderia conceber. O Céu estava cheio de santos e mediadores, cujo dever era solicitar esta mercê. A Terra estava cheia de obras piedosas, sacrifícios, observâncias e cerimônias pelas quais ela devia ser obtida. Eis um quadro da religião deste período transmitida a nós por alguém que foi por muito tempo um monge e, posteriormente, um colaborador de Lutero - Myconius: 'Os sofrimentos e méritos de Cristo eram considerados como um conto sem valor ou como as ficções de Homero. Não havia nenhum pensamento de fé pela qual nos tornamos participantes da justiça do Salvador e da herança da vida eterna. Cristo era considerado um juíz severo, preparado para condenar todos os que não recorriam à intercessão dos santos ou às indulgências papais. Outros intercessores apareciam no lugar dele: - primeiro a Virgem Maria, como a Diana do paganismo, e então os santos, cujos números eram aumentados continuamente pelos papas. Estes mediadores concediam sua intercessão apenas àqueles suplicantes merecedores do bem das ordens fundadas por eles. Para isto era necessário fazer, não o que Deus mandou em sua Palavra, mas realizar uma quantidade de obras inventadas pelos monges e sacerdotes, e que trouxessem dinheiro para o cofre. Estas obras eram Ave-Marias, as orações de Santa Úrsula e Santa Bridget: eles deviam recitar e clamar noite e dia. Havia tantos locais de visitas para peregrinos quanto montanhas, florestas e vales. Mas estas penitências podiam ser combinadas com dinheiro. O povo, portanto, trazia aos conventos e aos sacerdotes dinheiro e toda a coisa que tinha algum valor - galinhas, patos, gansos, ovos, cera, palha, manteiga e queijo. Então os hinos ressoavam, o sinos tocavam, o incenso enchia o santuário, os sacrifícios eram oferecidos, as despensas transbordavam, os copos circulavam e as missas finalizavam e encobriam estas piedosas orgias. Os bispos não pregavam mais, mas consagravam sacerdotes, sinos, monges, igrejas, capelas, imagens, livros e cemitérios; e tudo isto trazia um grande rendimento. Ossos, braços e pés eram preservados em caixas douradas e prateadas; eles eram entregues durante a missa para os fiéis beijarem, e isto também era uma fonte de grande lucro.'

'Todas estas pessoas sustentavam que o papa, 'sentando-se como Deus no templo de Deus', não podia errar, e elas não admitiriam qualquer contradição.'

Na igreja de Todos os Santos em Wittenberg foi mostrado um fragmento da arca de Noé, fuligem da fornalha dos Três Jovens, um pedaço de madeira da manjedoura de Jesus Cristo, um pelo da barba de São Cristovão e dezenove mil outras relíquias de maior ou menor valor. Em Schaffhausen foi exibido um sopro de São José que Nicodemos recebeu em sua luva. Em Wurtemberg podia-se encontrar um vendedor de indulgências, vendendo sua mercadoria, com sua cabeça adornada com uma grande pena arrancada da asa de São Miguel. Mas não era necessário viajar longe em busca destes preciosos tesouros. Os homens que cultivavam estas relíquias atravessavam o país inteiro, vendendo-as próximo aos distritos rurais (como já tinha acontecido com as Escrituras Sagradas) e levando-as às casas dos fiéis, para poupar-lhes o incômodo e a despesa de uma peregrinação. Eles eram exibidos com pompa nas igrejas. Estes vendedores ambulantes pagavam uma soma estipulada pelos proprietários das relíquias - uma percentagem de seus lucros. O reino do Céu tinha desaparecido, e em seu lugar um mercado de abominações tinha sido aberto sobre a Terra.

Assim um espírito de profanação tinha invadido a religião; e as mais santas recordações da Igreja, as ocasiões que mais particularmente convocavam os fiéis a santa meditação e amor, foram desgraçadas por bufonaria e profanação idólatra. As 'Celebrações da Páscoa' mantinham um distinguido lugar nos registros da Igreja. Como o festival da ressurreição de Cristo devia ser celebrado com alegria, os pregadores estudavam em seus sermões tudo o que pudesse suscitar o riso entre seus ouvintes. Um imitava a nota do cuco, outro grasnava como um ganso. Um arrastava para o altar um leigo vestido com o hábito de um monge; um segundo relatava as mais indecentes histórias; e um terceiro recontava os truques de São Pedro, e entre outros, como em uma taverna ele tinha enganado seu anfitrião não pagando sua conta. O baixo clero tirava vantagem desta oportunidade para ridicularizar seus superiores. As igrejas se convertiam em meros cenários para saltimbancos e os sacerdotes em bufões.

Se tal era o estado da religião, o que deve ter sido o estado da moralidade? ...

A doutrina e a venda de indulgências eram poderosos incentivos para o mal entre um povo ignorante. É verdade, de acordo com a Igreja, que as indulgências poderiam beneficiar apenas aqueles que prometiam emendar suas vidas, e que mantinham sua palavra. Mas o que poderia ser esperado de uma doutrina inventada somente com vistas ao lucro que poderia derivar dela? Os vendedores das indulgências eram tentados, para uma melhor venda de sua mercadoria, a apresentar seus artigos ao povo nos aspectos mais atrativos e sedutores. Os próprios instruídos não compreendiam plenamente a doutrina. Tudo o que a multidão via neles era que eles permitiam aos homens pecarem; e os mercadores não estavam demasiado ávidos em dissipar um erro tão favorável a suas vendas.

Que distúrbios e crimes foram cometidos nestas eras escuras, quando a impunidade era adquirida por dinheiro! O que tinha o homem a temer, quando uma pequena contribuição para construir uma igreja defendia-o do temor de punição no mundo por vir? Que esperança poderia haver de reavivamento quando toda comunicação entre Deus e o homem estava cortada, e o homem, alienado de Deus, que é o espírito e a vida, movia-se unicamente em um ciclo de cerimônias sem valor e observâncias sensuais, em uma atmosfera de morte!

Os sacerdotes eram os primeiros que cediam a esta influência corruptora. Desejando exaltaram-se tornavam-se degradados. Eles tinham almejado roubar a Deus de um raio de sua glória e colocá-lo em seu próprio seio, mas sua tentativa tinha-se provado vã, e eles tinham apenas escondido ali um fermento de corrupção roubado do poder do mal. A história da época abunda com escândalos. Em muitos lugares, o povo se deleitava em ver um sacerdote manter uma amante, para que as mulheres casadas pudessem estar seguras contra suas seduções. Que cenas humilhantes a casa de um pastor apresentava naqueles dias! O pobre homem sustentava a mulher e os filhos que ela lhe gerava com os dízimos e ofertas. Sua consciência era perturbada: ele corava na presença do povo, diante de seus empregados e perante Deus. A mãe, temedo vir a passar necessidade se o sacerdote morresse, fazia provisão contra isto de antemão, e roubava sua própria casa. Sua honra era perdida. Seus filhos eram sempre uma viva acusação contra ela. Desprezados por todos, eles mergulhavam em contendas e dissipação. Tal era a família do sacerdote! ..... Estas eram cenas terríveis, por meio das quais o povo sabia como beneficiar-se.

Os distritos rurais eram cenário de numerosos tumultos. As habitações do clero eram frequentemente esconderijos de corrupção. Corneille Adrian em Burges, o abade Trinkler em Cappel, imitavam os costumes do Oriente, e tinham seus próprios hárens. Sacerdotes, unindo-se a caráteres dissolutos, frequentavam as tavernas, jogavam dados, e coroavam suas orgias com disputas e blasfêmia. ...

Se formos adiante na ordem hierárquica, não encontraremos menor corrupção. Os dignitários da Igreja preferiam o tumulto dos campos aos hinos do altar. Ser capaz, com a lança na mão, de reduzir seus vizinhos a obediência era uma das principais qualificações de um bispo. Baldwin, arcebispo de Treves, estava continuamente em guerra com seus vizinhos e seus vassalos: ele demolia seus castelos, construia fortalezas e não pensava em nada a não ser na extensão de seu território.

Um certo bispo de Eichstadt, quando adminstrando a justiça, usava uma capa de correspondência sob seu manto, e tinha uma grande espada em sua mão. Ele costumava dizer que não temia cinco bavários, desde que eles não o atacassem a não ser em uma luta justa. Por toda a parte os bispos estavam continuamente em guerra com suas cidades. Os cidadãos exigiam liberdade, os bispos requeriam implicita obediência. Se os últimos ganhavam a vitória, puniam os revoltosos sacrificando numerosas vítimas à sua vingança; mas a chama da insurreição irrompia novamente, no mesmo momento em que se pensava estar extinguida.

E que espetáculo era apresentado pelo trono pontifical nos tempos que precederam imediatamente a Reforma! Roma, deveria-se reconhecer, tinha raramente testemunhado tanta infâmia.

Rodrigo Borgia, após ter vivido com uma senhora romana, tinha continuado a mesma ilícita ligação com uma de suas filhas, chamada Rosa Vanozza, com quem teve cinco filhos. Ele era cardeal e arcebispo, vivia em Roma com Vanozza e outras mulheres, visitando as igrejas e hospitais, quando a morte de Inocêncio VIII criou vaga na cadeira pontifical. Ele foi bem sucedido em obtê-la subornando cada cardeal a um preço estipulado. Quatro mulas carregadas com prata publicamente entraram no palácio de Sforza, um dos mais influentes dos cardeais. Borgia tornou-se papa sob o nome de Alexander VI, e regozijou-se em assim alcançar o ápice da felicidade terrestre.
" History of the Reformation of the Sixteenth Century, Livro 1, Capítulo 3.

Apesar das descrições acima, essa não era a totalidade do quadro religioso apresentado na Idade Média, conforme D'Aubigne:

"Roma mal havia usurpado o poder antes que forte oposição se formasse contra ela, a qual continuou ao longo dos Séculos Medievais.

O arcebispo Claudius de Turin, no nono século; Pierre de Bruys, seu discípulo Henry, e Arnold de Brescia, no décimo segundo século, na França e na Itália, trabalharam para restabelecer a adoração a Deus em espírito e em verdade; mas, no máximo, ele procuravam muito esta adoração na ausência de imagens e de observância externas. ...

Wickliffe se ergueu na Inglaterra em 1360, e apelou do papa para a palavra de Deus: mas a real ferida interna do corpo da Igreja era, aos seus olhos, apenas um dos numerosos sintomas da doença.

John Huss pregou na Boêmia um século antes de Lutero pregar na Saxônia. Ele parece ter penetrado mais fundo do que seus predecessores na essência da verdade cristã. Ele orava a Cristo por graça para gloriar-se somente em sua cruz e na inestimável humilhação de seus sofrimentos. Mas suas investidas foram menos diretas contra os erros da Igreja romana do que contra as vidas escandalosas do clero. Ele foi, todavia, se nos permitem a expressão, o João Batista da Reforma. As chamas de sua estaca acenderam um fogo na Igreja que lançou uma luz brilhante nas trevas circundantes, e cujas fagulhas não deviam ser prontamente extinguidas.

John Huss fez mais: palavras proféticas foram pronunciadas das profundezas de seu calabouço. Ele previu que uma real reforma da Igreja estava às portas. Quando expulso de Praga e compelido a vaguear pelos campos da Boêmia, onde uma imensa multidão seguia seus passos e esperava por suas palavras, ele exclamou: 'Os maus já começaram a preparar uma traiçoeira armadilha para o ganso. Mas se até o ganso, que é apenas uma ave doméstica, um animal pacífico, e cujo vôo não é muito alto no ar, tem apesar disso avançado mediante seus esforços, outras aves, ascendendo mais ousadamente para o céu, avançarão com ainda maior força. Ao invés de um débil ganso, a verdade expedirá águias e falcões de vista aguçada.' Esta predição foi cumprida pelos reformadores.

Quando o venerável sacerdote foi intimado pela ordem de Sigismund perante o concílio de Constance, e foi atirado na prisão, a capela de Bethlehem, na qual ele tinha proclamado o evangelho e os futuros triunfos de Cristo, ocupou sua mente, muito mais do que sua própria defesa. Em uma noite o santo mártir viu na imaginação, das profundezas de seu calabouço, as figuras de Cristo que ele tinha pintado nas paredes de seu oratório apagadas pelo papa e seus bispos. Esta visão afligiu-o: mas no dia seguinte ele viu muitos pintores ocupados em restaurar estas figuras em maior número e em mais brilhantes cores. Tão logo sua tarefa terminou, os pintores, que estavam rodeados por uma imensa multidão, exclamaram: Que agora venham os papas e bispos! eles nunca mais as apagarão! E muitas pessoas em Bethlehem se regozijaram, e eu com elas, acrescenta John Huss. - 'Ocupe-se com sua defesa ao invés do que com seus sonhos', disse seu fiel amigo, o cavaleiro de Chlum, a quem ele tinha comunicado a visão. 'Eu não sou um sonhador', replicou Huss, 'mas eu mantenho isto por certo, que a imagem de Cristo nunca será apagada. Eles têm desejado destrui-la, mas ela será pintada novamente em todos os corações por pregadores muito melhores do que eu. A nação que ama Cristo se regozijará com isto. E eu, despertando de entre os mortos, e erguendo-me, por assim dizer, de minha sepultura, saltarei com grande alegria.'

Um século se passou; e a tocha do evangelho, acesa novamente pelos reformadores, iluminou verdadeiramente muitas nações, que se regozijaram em seu brilho. ...

Anselmo de Canterbury estabeleceu como a própria essência do Cristianismo as doutrinas da encarnação e expiação, e em uma obra em que ele ensina-nos como morrer, ele diz para a alma que está partindo: 'Confie apenas nos méritos de Jesus Cristo.' São Bernardo proclamou com poderosa voz os mistérios da Redenção. 'Se meu pecado veio de outro', ele diz, 'por que minha justiça não me seria concedida da mesma maneira? Seguramente é melhor para mim que ela me seja dada, do que se ela fosse inata.' Muitos escolásticos, e em tempos anteriores, o Chanceler Gérson, vigorasamente atacaram os erros e abusos da Igreja.

Mas reflitamos, acima de tudo, acerca das milhares de almas, obscuras e desconhecidas ao mundo, foram, não obstante, participantes da verdadeira vida de Cristo.

Um monge chamado Arnoldi apresentava, cada dia, esta fervente oração em sua cela silenciosa: 'Oh! Senhor Jesus Cristo! Eu creio que somente tu és minha redenção e minha justiça.' Christopher de Utenheim, um piedoso bispo de Basel, tinha seu nome inscrito em uma pintura pintada em vidro, a qual está ainda naquela cidade, e cercou-o com este lema, que ele desejava ter continuamente diante de seus olhos: 'Minha esperança está na cruz de Cristo; eu busco a graça e não as obras.'

Um pobre frade cartusiano, chamado Martin, escreveu uma tocante confissão, na qual ele diz: 'Oh! misericordioso Deus! eu sei que eu não posso ser salvo e satisfazer tua justiça de outro modo que não seja pelos méritos, pela inocente paixão, e pela morte de teu querido e amado Filho. ... Santo Jesus! toda a minha salvação está em tuas mãos. Tu não podes afastar-me das mãos de teu amor, pois elas me criaram, formaram-me, e me redimiram. Tu tens escrito meu nome com uma pena de ferro, com grande misericórdia e de maneira indelével, no teu lado, em tuas mãos e em teus pés,' etc.etc. Então o bom cartusiano colocou sua confissão em uma caixa de madeira, e encerrou-a em um buraco que ele tinha feito na parede de sua cela.

A piedade do irmão Martin nunca teria sido conhecida, se a caixa não tivesse sido descoberta em 21 de dezembro de 1776, quando alguns trabalhadores estavam derrubando uma velha construção que tinha sido parte do convento cartusiano em Basel. Quantos conventos não poderiam ter encoberto tais tesouros! ...

Thomas Conecte, um frade carmelita, apareceu em Flanders. Ele declarou que 'as mais grosseiras abominações eram praticadas em Roma, que a Igreja requeria uma reforma, e que conquanto sirvamos a Deus, não devemos temer as excomunhões do papa.' O país inteiro escutou com entusiasmo; Roma condenou-o à estaca em 1432, e seus contemporâneos declararam que ele tinha sido transladado para o Céu.

O cardeal Andrew, arcebispo de Crayn, sendo enviado a Roma como o embaixador do imperador, foi tomado de consternação ao descobrir que a santidade papal, em que ele cria devotamente, era mera ficção; e em sua simplicidade dirigiu-se a Sixtus IV em linguagem de objeção evangélica. A zombaria e a perseguição foram sua única resposta. Por isto ele se esforçou para reunir, em 1482, um novo concílio em Basel. 'A igreja inteira', disse ele, 'está sacudida por divisões, heresias, pecados, vícios, injustiça, erros, e males sem conta, bem como está prestes a ser engolida pelo abismo devorador da danação. Por este motivo nós proclamamos um concílio geral para a reforma da fé católica e a purificação da moralidade.' O arcebispo foi lançado na prisão em Basel, onde ele morreu. O inquisidor, Henry Institoris, que foi o primeiro a se opor a ele, pronunciou estas notáveis palavras: "Todo o mundo clama e exige um concílio; mas não existe poder humano que possa reformar a Igreja por um concílio. O Altíssimo encontrará outros meios, que presentemente são desconhecidos para nós, embora possam estar às portas, para trazer de volta a Igreja a sua condição primitiva.' Esta notável profecia, comunicada por um inquisidor, no próprio período do nascimento de Lutero, é a melhor apologia para a Reforma.

Jerome Savonarola, logo após entrar na ordem Dominicana em Bologna em 1475, devotou-se a contínuas orações, jejuns e mortificações, e clamava: 'Tu, ó Deus, és bom, e em tua bondade ensina-me tua justiça.' Ele pregou com energia em Florença, cidade para qual havia-se mudado em 1489. Sua voz levava convicção; seu semblante era iluminado por entusiasmo; e sua atitude possuía encantadora graça. 'Devemos regenerar a Igreja', disse ele, e ele professava o grande princípio que unicamente poderia efetuar esta regeneração. 'Deus', ele exclamou, 'redime os pecados dos homens e justifica-os por sua graça. Há tanta compaixão no Céu quanto homens justificados sobre a Terra, pois ninguém é salvo por suas próprias obras. Nenhum homem pode vangloriar-se; e se, na presença de Deus, pudéssemos perguntar a todos estes pecadores justificados: -Você foi salvo por sua própria força? - todos responderiam em uma voz: Não a nós, ó Senhor! não a nós, mas ao teu nome seja a glória! - Portanto, ó Deus, eu busco a tua graça, e te trago não a minha própria justiça, mas quando por tua graça me justificas, então tua justiça me pertence, pois a graça é a justiça de Deus. -Enquanto, ó homem, enquanto tu não crês, tu és, por causa de teu pecado, destituido da graça. -Ó Deus,salva-me por tua justiça, quer dizer, em teu Filho, único entre os homem que foi achado sem pecado!' Assim a grandiosa e santa doutrina da justificação pela fé alegrava o coração de Savonarola. Em vão os que presidiam a Igreja se opuseram a ele; ele sabia que os oráculos de Deus estavam muito acima da Igreja visível, e que ele devia proclamar estes oráculos com o auxílio da Igreja, sem ele, ou mesmo a despeito dela. 'Fuja', clamava ele, 'fuja para longe de Babilônia!' e foi Roma a quem ele designou assim, e Roma em breve respondeu em sua maneira usual. Em 1497, o infame Alexander VI emitiu uma ordem contra ele; e em 1498, a tortura e a estaca terminaram com a vida deste reformador. ...

'Um monge chamado Jonh Hilten foi um interno do convento franciscano em Eisenach, na Turíngia. As profecias de Daniel e o Apocalipse de São João eram seu estudo especial. Ele até escreveu um comentário sobre estas obras, e censurou os mais flagrantes abusos da vida monástica. Os monges exasperados atiraram-no na prisão. Sua avançada idade e a imundície do calabouço causaram-lhe uma perigosa doença: ele chamou o superior, e o último, mal tendo chegado perante ele, explodiu em violenta paixão, e sem ouvir as queixa do prisioneiro, amargamente acusou sua doutrina, que se opunha, acrescenta a crônica, a cozinha dos monges. O franciscano esquecendo sua enfermidade e suspirando pesadamente, respondeu: 'Eu suporto seus insultos calmamente por amor de Cristo, pois não tenho dito nada que possa por em perigo a situação monástica: tenho apenas censurado seus mais notórios abusos. mas, continuou ele (de acordo com o que Melancthon registra em sua Apologia da Confissão de Fé de Augsburg), 'outro homem surgirá no ano de nosso Senhor de 1516: ele vos destruirá, e não sereis capazes de resistir-lhe.' John Hilten, que tinha profetizado que o fim do mundo viria em 1651, estava menos enganado ao indicar o ano em que o futuro reformador apareceria. Não muito tempo depois, ele nasceu em uma pequena vila a uma pequena distância do calabouço do monge: nesta mesma cidade de Eisenach ele iniciou seus estudos, e somente um ano mais tarde do que o frade aprisionado tinha declarado, ele publicamente iniciou a Reforma.
" History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 1, capítulo 6, J.H. Merle D'Aubigne.