quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Deus existe? A Evolução é um fato?

Pretendo terminar a série de posts "Misticismo X Racionalidade". Mas antes de continuar sobre o tema, pretendo dar uma pausa para considerar estas questões acima. Elas poderiam ser consideradas em posts separados, pois são dois assuntos diferentes. Crer em um Deus não implica em não crer na Evolução e acreditar na Evolução não implica em não crer em um Deus. Mas estou colocando estas duas questões juntas porque até a divulgação da “Origem das Espécies” de Charles Darwin não se considerava haver contradição entre a crença em Deus e a Ciência. Inclusive a maioria dos primeiros cientistas, daqueles que descobriram o método científico, como Galileu, Newton, Da Vinci e outros, criam em Deus e essa crença os induziu ao desenvolvimento do método cientifico, que é um tema para um post futuro. Foi somente depois que a “Origem das Espécies” ganhou status de “teoria científica” que a crença em Deus passou a ser algo a ser estigmatizado pelo que se acredita ser a maioria acadêmica, embora se estime que cerca de 2/3 dos cientistas atuais creiam em Deus (www.msnbc.msn.com/id/8916982/ns/technology_and_science-science/t/scientists-belief-god-varies-discipline/). Na verdade, as questões acima se desdobram em várias outras, mas eu resumiria tudo em quatro questões principais: Existem boas razões para crer na existência de Deus? Existem boas razões para não crer? A Evolução pode ser considerada um fato? Existem evidências contrárias?


Com relação as duas primeiras questões, eu pretendo enumerar algumas razões para elas que costumam ser mais comuns, mas com certeza, não tenho a pretensão de esgotar o tema. Com relação às duas últimas, é importante definir os significados das palavras “fato”, “evidência” e “ciência”, entre outras.


Procurei na internet algumas estatísticas de quantas pessoas ao redor do mundo creem em algum deus. Concluí, se elas estão corretas, que acima de 75% das pessoas, mais ou menos, acredita em algum tipo de deus. Não é preciso muita habilidade para perceber isso. A maioria das pessoas têm alguma forma de religião que propõe alguma forma de divindade ou ser superior. Maioria pode ser considerado um bom argumento para muitos; essa é uma razão que muitos costumam apresentar para suas atitudes e crenças. Pessoalmente, considero essa uma péssima razão. Basta pesquisar um pouco a história do mundo para perceber como as maiorias estiveram erradas em incontáveis exemplos através da história. Por muito tempo, maiorias acreditaram que a Terra fosse o centro do Universo, que a vida podia surgir de restos orgânicos, que mulheres eram menos capazes que os homens, entre outras ideias que já prevaleceram nas sociedades. Maiorias podem decidir eleições, mas não garantem que as escolhas sejam as melhores. Uma razão aparentemente boa para não se crer em Deus seria o fato de não se poder vê-lo ou tocá-lo.

Contudo, muitas tecnologias utilizadas em nosso mundo estão baseadas em teorias que são abstratas e das quais podemos apenas ter evidências. É o caso da relatividade, mecânica quântica e outras teorias. Mas, antes de prosseguir com estas duas questões, consideremos, por um momento, as questões relativas a definições de palavras e Evolução.


As definições para “fato”, encontradas em dicionários, são do tipo algo “real” ou “verdadeiro”, “que existe”. Já “evidência”, no contexto científico, é uma informação que altera a probabilidade de hipóteses relevantes. Portanto, uma evidência favorável a uma hipótese aumenta a probabilidade dessa hipótese se confirmar. “Ciência” seria o método científico em funcionamento, o qual consiste, basicamente, em observação controlada (observação preliminar, planejamento da coleta de informações, coleta de informações, elaboração de dados a partir das informações coletadas, tudo isso seguindo critérios da Estatística e da Teoria da Informação) e sistematização formal, que é o processo de elaborar e utilizar modelos matemáticos que expressem aspectos do assunto em estudo1. Normalmente, em Ciência, as coisas raramente podem ser ditas como “provadas”, mas geralmente, a maior parte dos dados ou leis obtidos em Ciência são evidências para algo. Assim, considerando a evolução das espécies, como proposta por Charles Darwin e posteriormente corrigida para o Neodarwinismo, do ponto de vista da definição de Ciência proposta acima, ela está, basicamente, restrita à primeira parte do método científico apenas, pois não existe um modelo matemático abrangente do qual surjam naturalmente as proposições evolutivas ou que faça uso formal (matemático) delas: mutações e seleção natural2. E isto não entra no mérito de elas serem ou não boas ideias, apenas que não se encaixam na plenitude do método científico, como fazem, por exemplo, a Relatividade Geral, a Mecânica Quântica, etc. Com respeito a evidências, por exemplo, as que serviriam para solidificar hipóteses como o ancestral comum ou as modificações sofridas até se obter a diversidade de seres existentes hoje são praticamente inexistentes ou duvidosas. Por exemplo, o registro fóssil não apresenta as diferentes graduações até as formas atuais, salvo algumas poucas formas que poderiam ser consideradas como intermediárias. O que se observa é não uma evolução gradual até os estágios atuais, mas quase todo o tempo dado para a idade da Terra com poucas formas de vida e, de repente, no período Cambriano, uma explosão de formas de vida complexas. Ou seja, repentinamente, aparece uma multidão de formas de vida complexas sem nenhuma forma intermediária anterior aparente. E quanto ao ancestral comum, por exemplo, ele teria supostamente surgido de uma célula primordial que teria descendido de algum grupo de moléculas orgânicas originais, RNAs primitivos ou um ciclo metabólico simples, coisas que se têm demonstrado em experimentos de laboratório altamente improváveis. O maior argumento a favor da Evolução é que a maioria acadêmica aceita esta hipótese. E a realidade é que este é motivo suficiente para muitas pessoas.


Voltando às questões sobre a existência de Deus, uma pergunta comum que é feita por muitos que não acreditam nEle é a seguinte: Se Deus existe e criou tudo, quem criou Deus? Esta pergunta, em termos de lógica, é semelhante a que os antigos faziam sobre o nosso planeta: o que acontece quando chegamos ao fim do mundo: podemos cair da borda da Terra? Em outras palavras: este tipo de pergunta apenas demonstra nossa falta de conhecimento para lidar com o assunto: essas perguntas não fazem sentido quando se entende a realidade; precisam ser modificadas. Deus, não sendo limitado por tempo e espaço e existindo além deles, não pode ser sujeito às mesmas leis físicas que nós. Não se pode falar em criação (algo que supõe tempo) do que existe for a do espaço-tempo. Outra questão comumente apresentada é quanto à presença do mal ou sofrimento: se Deus existe por que permite as guerras ou as doenças ou a injustiça? A resposta para este tipo de questão requer considerações de mais alto nível do que a anterior e não pode ser encontrada simplesmente pelo estudo da Natureza. A Bíblia apresenta a resposta para esta questão. A resposta, resumidamente, é que a presença do mal em nosso planeta é o resultado da escolha dos ancestrais humanos. A eles foi dada a liberdade de escolherem o governo de Deus ou não no planeta. A escolha contrária ao governo de Deus, cujas leis promoveriam o máximo bem-estar no planeta, significou que as coisas não funcionariam mais como planejadas, e isto implicou em mau funcionamento que gera sofrimento e injustiça. Mas por que Deus permitiu que isso acontecesse? - muitos perguntam. Porque Ele não queria que os seres humanos fossem autômatos programados para fazerem o que os programou para fazer, queria que eles fossem semelhantes a Ele, capazes de fazer escolhas inteligentes, capazes de amar por entendimento e livremente. Ele previu o que aconteceria com a humanidade e providenciou um plano para corrigir o mal, o qual está em andamento. É verdade que há muito sofrimento na Terra, muitos sofrem sem causa, mas em muitos casos, as pessoas que sofrem trouxeram sobre si mesmas o sofrimento por seus maus hábitos, por suas escolhas. No plano de Deus para corrigir o mal, Ele sofreu (na pessoa de Jesus Cristo) mais do que qualquer ser humano jamais sofrerá. Sobre Ele foi colocada a culpa por toda transgressão já praticada no planeta. Sob o peso dessa culpa seu coração se rompeu e quando os soldados romanos retiraram o corpo da cruz, uma lança rasgou o peito de Jesus e dali saiu “sangue e água” (João 19:34). Agora, imagine essa história, por um momento: todas as divindades em todas as culturas recebem a adoração de seres humanos e todas concedem dons ou favores, mas todas permanecem na sua esfera superior ou se elas viessem a Terra não seria para serem pobres, sofredoras ou rejeitadas, mas principalmente, não viriam para pagar por um crime que não cometeram, muito menos por todos os crimes já cometidos. E por que tudo isso? Para colocar o ser humano novamente na sua condição original, por amar tanto essas criaturas que formou que não deseja perdê-las apesar do que elas trouxeram sobre si mesmas. De um ponto de vista egoísta, seria mais fácil deixar estas criaturas simplesmente morrerem conforme elas escolheram.


Já um cientista chamado Maupertuis inspirado na ideia de que tudo o que Deus faz é perfeito descobriu o princípio da ação mínima, do qual derivam todas as leis da Física.


Existem, com certeza, muitas questões que poderiam ser adicionadas aqui, mas como disse, não pretendo esgotar o assunto. Mas gostaria de acrescentar alguns motivos para acreditar em Deus.


Porque a vida não parece ter-se originado por acaso (seguindo meramente leis químicas e físicas), isto tem-se demonstrado altamente improvável.


Porque a história tem seguido em detalhes (até com datas específicas) previsões das profecias bíblicas.


Porque a fé no Deus bíblico está por traz dos melhores avanços da humanidade, como a observação da natureza, o respeito aos direitos humanos, o desenvolvimento do método científico e, acima de tudo, regeneração da humanidade.

1O Método Científico. Eduardo F. Lütz

2Entenda-se que não estou me referindo a alguns cálculos matemáticos, mas a um modelo matemático abrangente para a Evolução das Espéicies.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Misticismo X Racionalidade: A Religião na Idade Moderna

É um pensamento comum em nosso tempo o de que o retorno ao estudo dos clássicos gregos e latinos, nos últimos séculos da Idade Média, com o consequente despertamento cultural e o surgimento dos ideais humanistas e, posteriormente, racionalistas, tenham colocado o mundo em uma nova rota de desenvolvimento científico, valorização da razão, dos direitos humanos, liberdade e igualdade. Nesta perspectiva, a Reforma teria sido apenas mais um movimento de emancipação que acompanhou as tendências da época.

Um estudo cuidadoso da história, no entanto, nos mostra que embora o retorno ao estudo dos clássicos gregos e latinos tenha dado um impulso a Reforma por possibilitar a leitura do Novo Testamento em sua língua original, o grego, o desenvolvimento científico (a partir da descoberta do método científico), a valorização da razão, direitos humanos, liberdade e igualdade são valores que provêm antes do retorno à religião bíblica durante a Reforma do que do mero estudo dos clássicos. Eu não pretendo apenas afirmar isto aqui. Eu gostaria de convidar aqueles que me lêem a um passeio pela história dentro de nossas limitadas possibilidades.

Antes de iniciarmos nosso passeio, convém abrir parênteses para enfatizar uma diferença crucial existente entre a religião bíblica e qualquer outra forma de religão, pensamento ou filosofia de vida. (Isto precisa ser dito, creiamos ou não na Bíblia como uma fonte confiável de informação,' para que os eventos históricos referentes a Reforma possam ser entendidos.) A ênfase de todos os tipos de religiões que não têm a Bíblia como único fundamento em questões de fé é posta sobre o que o homem pode realizar para alcançar benefícios, vida após a morte, iluminação ou o que seja. Seja por meio de sacrifícios, boas obras, esforços, peregrinações, meditações, etc. Filosofias de vida diferentes, não importa quão diferentes entre si, sempre se centralizam em coisas que os seres humanos podem realizar e experimentar. A religião bíblica (aquela que se baseia unicamente no que está escrito na Bíblia e a usa como seu próprio intérprete) coloca ênfase no que Deus faz pelos seres humanos, assim os sacrifícios de cordeiros do Antigo Testamento apontavam para "o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo" (João 1:29). Na perspectiva bíblica, quando o ser humano se alienou de Deus, no princípio de sua história, perdeu sua capacidade de amar a Deus e de ser genuinamente bom, uma vez que Deus seria a fonte do bem no homem e do funcionamento de todas as leis do Universo. Por causa disso, o ser humano passou a ter duas tendências: uma que o faz ter uma natureza religiosa e desejar o bem, boas coisas e até realizar várias delas, e outra que o faz rebelar-se contra Deus e ser egoísta (tendência a degradação). Um texto que declara isto inequivocamente é o seguinte: "Pois não faço o bem que quero, mas o mal que não quero, esse pratico. Ora, se eu faço o que não quero, já o não faço eu, mas o pecado que habita em mim. Acho então esta lei em mim, que, mesmo querendo eu fazer o bem, o mal está comigo. Porque, segundo o homem interior, tenho prazer na lei de Deus; mas vejo nos meus membros outra lei guerreando contra a lei do meu entendimento, e me levando cativo à lei do pecado, que está nos meus membros." Romanos 7:19-23.

Segundo a religião bíblica, o homem pode ser ético, estabelecer bons ideiais para si mesmo e os outros, mas é incapaz de, alienado de Deus, vencer completamente seu egoísmo. A solução bíblica para o problema humano está no que Deus pode fazer pelo homem quando este permite: "Porque a lei do Espírito da vida, em Cristo Jesus, te livrou da lei do pecado e da morte. Porquanto o que era impossível à lei, visto que se achava fraca pela carne, Deus enviando o seu próprio Filho em semelhança da carne do pecado, e por causa do pecado, na carne condenou o pecado para que a justa exigência da lei se cumprisse em nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito. ... Porquanto a inclinação da carne é inimizade contra Deus, pois não é sujeita à lei de Deus, nem em verdade o pode ser". "Pois o amor de Cristo nos constrange, porque julgamos assim: se um morreu por todos, logo todos morreram; e ele morreu por todos, para que os que vivem não vivam mais para si, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou. ...Pelo que, se alguém está em Cristo, nova criatura é; as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo. Mas todas as coisas provêm de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por Cristo, e nos confiou o ministério da reconciliação; pois que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não imputando aos homens as suas transgressões; e nos encarregou da palavra da reconciliação. De sorte que somos embaixadores por Cristo, como se Deus por nós vos exortasse. Rogamo-vos, pois, por Cristo que vos reconcilieis com Deus. Àquele que não conheceu pecado, Deus o fez pecado por nós; para que nele fôssemos feitos justiça de Deus." (Romanos 8: 2-4 e 8; 2 Coríntios 5: 14-15, 17-21.)

No ponto onde paramos, no post anterior, o mundo ocidental era um mundo místico, religioso, sem desenvolvimento científico, quase completamente estagnado em conhecimento, sem respeito a liberdade ou direitos humanos, mas ainda era um mundo centralizado no homem. A salvação dos homens estava centralizada na autoridade da Igreja, assumida pelo papa, para obter aprovação da divindade os homens realizavam orações e jejuns dedicados aos santos (seres humanos mortos), realizavam peregrinações e pagavam indulgências, em suma, confiavam nas próprias obras, na intercessão de sacerdotes e santos. Pagando uma boa soma em dinheiro muitos sentiam-se livres para viverem de acordo com seus instintos. Exemplares da Bíblia, em latim e grego, eram muito raros mesmo para os sacerdotes que, normalmente não a liam, o povo comum não tinha qualquer acesso a eles. É nesse contexto histórico que encontramos Lutero precisamente antes de começar a Reforma:

"Ele encontrou no convento uma Bíblia presa por uma corrente, e a esta Bíblia acorrentada ele retornava constantemente. Ele tinha apenas pouca compreensão da Palavra, todavia era seu mais agradável estudo. ... Parece que cerca desta época ele começou a estudar as Escrituras em suas línguas originais, e a lançar o fundamento do mais perfeito e útil de seus labores - a tradução da Bíblia. ... Queimando com o desejo de alcançar aquela santidade em busca da qual ele entrara no claustro, Lutero cedeu a todo o rigor de uma vida ascética. Ele se esforçou para crucificar a carne por jejuns, mortificações e vigílias. Encerrado em sua cela, como em uma prisão, ele lutava incessantemente contra os pensamentos enganosos e as más inclinações de seu coração. Um pequeno pão e peixe eram frequentemente seu único alimento. ...Lutero não encontrou na tranquilidade do claustro e na perfeição do monastério aquela paz de mente que tinha procurado ali. Ele desejava ter a segurança de sua salvação: esta era a grande necessidade de sua alma. Sem ela, não havia repouso para ele. Mas os temores que o tinham agitado no mundo perseguiam-no em sua cela. Não, eles tinham aumentado. ... O senso de sua pecaminosidade pertubava-o; a perspectiva do juízo de Deus enchia-o de temor. Mas no próprio momento em que estes terrores tinham alcançado seu ponto mais alto, as palavras de S. Paulo, que já o tinham impressionado em Wittenberg, "o justo viverá pela fé" [Galátas 3:11], retornaram forçosamente à sua memória e iluminaram sua alma como um raio do Céu." History of the Reformation of the Sixteenth Century, Livro 2, capítulos 3 e 6.

Acreditando que o único modo de um ser humano ser justificado diante de Deus é pela fé no que Cristo fez e faz por ele e que a única autoridade em matéria de fé são as Escrituras do Antigo e Novo Testamentos, Lutero lançou a base da libertação da escravidão espiritual do homem pelo homem, do estudo das Escrituras de cada pessoa por si mesma (e não através da interpretação dos sacerdotes) e da igualdade de todos os homens perante Deus.

Segundo D'Aubigné:

"O Cristianismo não é um simples desenvolvimento do Judaísmo. Diferente do papado, ele não objetiva confinar o homem nas apertadas faixas de ordenaças exteriores e doutrinas humanas. O Cristianismo é uma nova criação; ele toma posse do homem interior e tranforma-o nos mais profundos princípios de sua natureza humana, de modo que o homem não mais requer que outro homem imponha regras sobre ele; mas, ajudado por Deus, ele pode de si mesmo e por si próprio distinguir o que é verdadeiro e fazer o que é correto. Ao levar a humanidade para aquela idade madura que Cristo lhe adquiriu e libertá-la da tutela em que Roma a tinha mantido por tanto tempo, a Reforma deveria desenvolver o homem inteiro; e enquanto regenera seu coração e sua vontade pela Palavra de Deus, ilumina seu entendimento pelo estudo de conhecimento profano e sagrado. ... 'Ocupem-se com as crianças,' continua Lutero, ainda dirigindo-se aos magistrados; 'pois muitos pais são como avestruzes; eles estão endurecidos para com seus pequenos, e satisfeitos com ter posto o ovo, eles não se preocupam com nada depois disto. A prosperidade de uma cidade não consiste meramente em acumular grandes tesouros, em construir fortes muros, em erigir esplêndidas mansões, em possuir brilhantes exércitos. Se homens loucos caem sobre ela, sua ruína será apenas maior. A verdadeira riqueza de uma cidade, sua segurança e sua força, é ter cidadãos instruídos, sérios, dignos e bem-educados. E a quem devemos culpar porque existem tão poucos no presente, a não ser vocês magistrados, que têm permitido que nossa juventude cresça como árvores em uma floresta?' " History of the Reformation of the Sixteenth Century, Livro 10, capítulo 9.

Lutero e outros reformadores aprenderam que a religião bíblica requer um "culto racional" (Romanos 12:1). A Reforma foi o movimento que, no final da Idade Média, lançou os fundamentos para a valorização do ser humano como um ser racional, livre, independente e capaz de pensar por si mesmo. O renascimento da cultura grega e latina sozinho não fez isto, pois os cultos daquela época não ousavam questionar ou tentar modificar a estrutura estabelecida (ver http://www.iep.utm.edu/humanism/ no item "Erasmus"), os primeiros humanistas eram cristãos, mas a ruptura entre cristianismo e humanismo se deu durante o Iluminismo: "O Iluminismo da metade do século dezoito na Europa trouxe uma separação entre instituições religiosas e seculares que exemplificaram uma crescente fissura entre cristianismo e humanismo. A dependência em declínio dos fundamentos religiosos por parte de filósofos levou a experiências em vários planos políticos e sociais dos últimos poucos séculos ao redor do mundo, incluindo Comunismo Internacionalista, Socialismo Nacional, Facismo, Anarquismo, Teocracia, Caesaropapismo e várias comunidades utópicas. Cristãos participaram em todos estes movimentos em vários graus como indivíduos e institucionalmente, como participaram deístas e materialistas (ver http://en.wikipedia.org/wiki/Christian_Humanism).

O humanismo atual, um humanismo inclusivo, procura abraçar a humanidade toda com valores que foram trazidos à luz a partir da religião bíblica pela Reforma, com a diferença de que ele procura estabelecer estes valores à parte do Deus da Bíblia.

Considerando o método científico, por exemplo, as primeiras idéias para ele vieram de homens como Da Vinci, Galileu e Newton, os quais foram influenciados pela Bíblia e buscaram revelar a sabedoria do Deus bíblico através da Natureza que criam que Ele criou. Eles se deram conta do papel que a matemática tem no funcionamento da Natureza, o que para eles era perfeitamente natural, pois a Bíblia apresenta um Deus que governa segundo leis bem estabelecidas.

"A sabedoria é filha da experiência. A experiência jamais engana; e os que se lamentam dos seus logros deveriam antes lamentar-se da sua ignorância porque pedem à experiência aquilo que está para lá dos seus limites. Em contrapartida, pode o juízo enganar-se sobre a experiência; e para evitar o erro não há outra via senão reduzir todos os juízos a cálculos matemáticos o servir-se exclusivamente da matemática para entender e demonstrar as razões das coisas que a experiência manifesta. A matemática é o fundamento de toda a certeza." Leonardo da Vinci – apud in (ABBAGNANO 1970, Origens da Ciência, p. 9) (http://filosofiageral.wikispaces.com/A+Revolu%C3%A7%C3%A3o+Cient%C3%ADfica)

"A Filosofia [Física] está escrita neste grandioso livro que está sempre aberto à nossa contemplação (refiro-me ao universo), mas que não pode ser entendido sem que primeiro aprenda-se a língua, e conheçam-se os caracteres com os quais está escrito. Ele está escrito em linguagem matemática, e seus caracteres são triângulos, círculos, e outras figuras geométricas sem as quais é humanamente impossível entender sequer uma de suas palavras; sem estes
[caracteres] fica-se a vagar por um escuro labirinto." (Il Saggiatore, 1623, Galileo Galilei)

"Newton foi levado acima de tudo por argumentos derivados do estudo do universo, embora sua mente profundamente pensadora extraiu outros argumentos também. Este grande homem cria (Opticks III. Book. Query 31) que o movimento dos corpos celestiais demonstrava a existência Daquele que governa-os. Seis planetas - Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter e Saturno - revolvem-se ao redor do Sol. Todos os planetas rotacionam na mesma direção em órbitas que são mais ou menos concêntricas. (Não obstante, existem outros corpos, os cometas, que seguem totalmente diferentes órbitas, movendo-se em todas as direções e em cada região do Céu.) Newton acreditava que tal uniformidade de movimento só podia resultar da vontade de um Ser supremo." Derivation of the laws of motion and equilibrium from a metaphysical principle, by Pierre Louis Moreau de Maupertuis (http://en.wikisource.org/wiki/Derivation_of_the_laws_of_motion_and_equilibrium_from_a_metaphysical_principle).

Newton também escreveu um livro sobre as profecias de Daniel e Apocalipse, Observations upon the
Prophecies of Daniel,and the Apocalypse of St. John, in Two Parts
, que pode ser obtido no seguinte site http://www.isaacnewton.ca/daniel_apocalypse/

Em seu artigo acima e no seguinte, Accord between different laws of Nature that seemed incompatible, Maupertuis deduz o princípio da ação mínima, segundo ele "ninguém pode duvidar de que tudo é governado por um Ser supremo que tem imposto forças sobre os objetos materiais, forças que mostram seu poder, tal como ele destinou estes objetos a executar ações que demonstram sua sabedoria. A harmonia entre estes dois atributos é tão perfeita, que indubitavelmente todos os efeitos da Natureza poderiam ser derivados de cada um tomado separadamente. Uma cega e determinística mecânica segue os planos de um intelecto perfeitamente claro e livre." O princípio metafísico de Maupertuis do qual ele deriva seu princípio da ação mínima (um princípio de otimização) tem como base a crença de que Deus faz as coisas com sabedoria e perfeição e se origina da declaração bíblica: "E viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom." Gênesis 1:31.

Mesmo Freeman Dyson declarou: "A ciência ocidental nasceu da teologia cristã. Provavelmente não é um acidente que a ciência moderna tenha crescido explosivamente na Europa cristã e deixado para trás o resto do mundo. Milhares de anos de debates teológicos nutriram o hábito do pensamento analítico capaz de ser aplicado à análise de fenômenos naturais." Review of Feynman and of Polkinghorne "Belief in God in an Age of Science", 1998.

Na realidade, o Iluminismo e Racionalismo do século 18, que romperam com o Cristianismo, derivaram seus ideais da Reforma, como Russel também acreditava: "Russel argumenta que o iluminismo foi, em última instância, nascido da reação protestante contra a contra-reforma católica, quando as visões filosóficas dos últimos dois séculos cristalizaram-se em uma visão de mundo coerente. Ele argumenta que muitas das visões filosóficas, tais como afinidade pela democracia contra a monarquia, originaram-se entre os protestantes no início do século 16 para justificar seu desejo de romper com o papa e a Igreja Católica. Embora muitos destes ideais filosóficos tenham sido acolhidos por católicos, Russel argumenta, no século 18 o Iluminismo foi a manifestação do princípio do rompimento que começou com Martinho Lutero." Age of Enlightenment citando Russell, Bertrand. A History of Western Philosophy. p492-494." (ver http://en.wikipedia.org/wiki/Age_of_Enlightenment#cite_note-3)

A religião bíblica, é, na verdade, uma religião raramente praticada em nosso mundo. Ela foi praticada pelos ancestrais do povo de Israel (Abrãao, Isaque e Jacó) e apenas muito pouco tempo pelo próprio povo de Israel, que, na maior parte das vezes, viveu em rebelião contra seus princípios. Os primeiros cristãos viveram de acordo com ela, mas seus seguidores deram origem a Igreja Católica da Idade Média. Os primeiros protestantes deram lugar a descendentes que já não viviam de acordo com os princípios destes. Desta forma, os ideais que deram origem ao moderno humanismo, a saber, ética, racionalidade, democracia e direitos humanos (http://www.iheu.org/adamdecl.htm), além do método científico, tiveram origem nos princípios extraídos da religião bíblica, os ideais foram mantidos, mas o Deus que motivou a existência deles foi deixado de fora.

quarta-feira, 30 de março de 2011

Misticismo X Racionalidade: A Religião na Idade Média

O início da Idade Média foi delimitado pela queda do Império Romano Ocidental. Os povos germânicos que invadiram Roma deram origem às nações da Europa. Daquele império restou a Igreja Cristã que se tornou a Igreja Católica Apostólica Romana. A mudança de um grupo de pessoas que praticava o amor fraternal e era pobre em bens materiais e disposto a sacrificar a própria vida em favor da mensagem que pregava para uma instituição rica e poderosa com força para se impor sobre o mundo ocidental foi lenta e gradual. Começou quando a perseguição contra os cristãos deu lugar a tolerância, com o Édito de Milão, por Constantino, em 313 d.C. A igreja começou a fazer concessões em seus ensinos para se acomodar aos novos adeptos do paganismo à medida em que o cristianismo se tornava a religião oficial do império. A adoração de imagens que antes representavam deuses pagãos começou a fazer parte dos cultos, com a transmutação daquelas em santos cristãos. A mediação dos sacerdotes e dos santos começou a substituir a mediação de Jesus Cristo e a salvação pelas boas obras e ofertas para a igreja passaram a competir com a salvação pela fé em Cristo. O bispo de Roma ganhou preeminência sobre os outros bispos até se tornar o papa, cabeça de todas as igrejas, e a doutrina da infalibilidade papal foi aos poucos ganhando forma. Entre as atribuições dos sacerdotes estava a de serem os únicos a terem o direito de interpretar as Escrituras e estas só eram traduzidas para o latim e mantidas inacessíveis para o povo comum. Os cristãos que não aderiram às mudanças passaram a ser perseguidos e a Igreja foi se tornando cada vez mais poderosa ao impor sua política religiosa sobre o mundo medieval. Muito do conhecimento greco-romano foi sendo perdido ao longo dos séculos (aproximadamente 10 séculos). Não é por pouco que esta época ficou conhecida como a Idade Escura ou das Trevas.

Profecias bíblicas (nos livros de Daniel e Apocalipse) indicavam um longo período de apostasia e perseguição no futuro, ao final do domínio romano. Um dos apóstolos, Paulo, referindo-se a estas profecias afirmara: "Eu sei que depois da minha partida entrarão no meio de vós lobos cruéis que não pouparão o rebanho, e que dentre vós mesmos se levantarão homens, falando coisas perversas para atrair os discípulos após si." "Ora, quanto à vinda de nosso Senhor Jesus Cristo e à nossa reunião com ele, rogamos-vos, irmãos, que não vos movais facilmente do vosso modo de pensar, nem vos perturbeis, quer por espírito, quer por palavra, quer por epístola como enviada de nós, como se o dia do Senhor estivesse já perto. Ninguém de modo algum vos engane; porque isto não sucederá sem que venha primeiro a apostasia e seja revelado o homem do pecado, o filho da perdição, aquele que se opõe e se levanta contra tudo o que se chama Deus ou é objeto de adoração, de sorte que se assenta no santuário de Deus, apresentando-se como Deus." (Atos 20:29-30 e 2 Tessalonicenses 2:1-4.)

Os capítulos 2, 7 e 8 do livro de Daniel apresentam uma sucessão de quatro impérios mundiais: Babilônia, Medo-Pérsia, Grécia e Roma. Falam da divisão do último, Roma, e do surgimento de um poder perseguidor a partir deste. "Enquanto eu olhava, eis que o mesmo chifre fazia guerra contra os santos, e prevalecia contra eles". " Grande será o seu poder, mas não de si mesmo; e destruirá terrivelmente, e prosperará, e fará o que lhe aprouver; e destruirá os poderosos e o povo santo. Pela sua sutileza fará prosperar o engano na sua mão; no seu coração se engrandecerá, e destruirá a muitos que vivem em segurança; e se levantará contra o príncipe dos príncipes; mas será quebrado sem intervir mão de homem." (Daniel 7:21, 8:24-25.) O mesmo poder reaparece nas profecias de Apocalipse 12, 13 e 17: "Também lhe foi permitido fazer guerra aos santos, e vencê-los; e deu-se-lhe autoridade sobre toda tribo, e povo, e língua e nação." "Então ele me levou em espírito a um deserto; e vi uma mulher montada numa besta cor de escarlata, que estava cheia de nomes de blasfêmia, e que tinha sete cabeças e dez chifres. A mulher estava vestida de púrpura e de escarlata, e adornada de ouro, pedras preciosas e pérolas; e tinha na mão um cálice de ouro, cheio das abominações, e da imundícia da prostituição; e na sua fronte estava escrito um nome simbólico: A grande Babilônia, a mãe das prostituições e das abominações da terra. E vi que a mulher estava embriagada com o sangue dos santos e com o sangue dos mártires de Jesus. Quando a vi, maravilhei-me com grande admiração. Ao que o anjo me disse: Por que te admiraste? Eu te direi o mistério da mulher, e da besta que a leva, a qual tem sete cabeças e dez chifres." (Apocalipse 13:7 e 17:3-7)

Embora não seja o objetivo aqui entrar em detalhes destas profecias (o que poderá ser feito mais tarde), pode ser visto, desta pequena amostra do que dizem estas profecias, que estava predito o surgimento de um grande poder apóstata, no final do império romano, que exerceria um domínio entre as nações e perseguiria os que fossem fiéis a Deus.

Entre aqueles que procuraram permanecer no cristianismo original estavam os valdenses.

"Desde o início, os valdenses afirmavam o direito de cada fiel de ter a Bíblia em sua própria língua, sendo esta Bíblia a fonte de toda autoridade eclesiástica.

Os valdenses reuniam-se em casas de família ou mesmo em grutas, clandestinamente, devido à perseguição da Igreja Católica. Celebravam a Santa Ceia uma vez por ano. São considerados como uma igreja pré-reformada. Negavam a supremacia de Roma, rejeitavam o culto às imagens como idolatria e eram guardadores do sábado bíblico.
" valdenses

Muitos morreram queimados na estaca ou por meio de outras torturas durante este tempo, na verdade, qualquer um que estivesse em desacordo com as idéias que a Igreja defendesse e, principalmente, se ameaçasse sua supremacia.

D'Aubigne, em sua "História da Reforma no Décimo Sexto Século" apresenta um pouco as condições da Europa na época anterior a Reforma:

"As nações da Cristandade não mais olhavam a um Deus santo e vivo para o livre dom da vida eterna. Para obtê-la, elas eram obrigados a recorrer a todos os meios que uma imaginação supersticiosa, temerosa e alarmada poderia conceber. O Céu estava cheio de santos e mediadores, cujo dever era solicitar esta mercê. A Terra estava cheia de obras piedosas, sacrifícios, observâncias e cerimônias pelas quais ela devia ser obtida. Eis um quadro da religião deste período transmitida a nós por alguém que foi por muito tempo um monge e, posteriormente, um colaborador de Lutero - Myconius: 'Os sofrimentos e méritos de Cristo eram considerados como um conto sem valor ou como as ficções de Homero. Não havia nenhum pensamento de fé pela qual nos tornamos participantes da justiça do Salvador e da herança da vida eterna. Cristo era considerado um juíz severo, preparado para condenar todos os que não recorriam à intercessão dos santos ou às indulgências papais. Outros intercessores apareciam no lugar dele: - primeiro a Virgem Maria, como a Diana do paganismo, e então os santos, cujos números eram aumentados continuamente pelos papas. Estes mediadores concediam sua intercessão apenas àqueles suplicantes merecedores do bem das ordens fundadas por eles. Para isto era necessário fazer, não o que Deus mandou em sua Palavra, mas realizar uma quantidade de obras inventadas pelos monges e sacerdotes, e que trouxessem dinheiro para o cofre. Estas obras eram Ave-Marias, as orações de Santa Úrsula e Santa Bridget: eles deviam recitar e clamar noite e dia. Havia tantos locais de visitas para peregrinos quanto montanhas, florestas e vales. Mas estas penitências podiam ser combinadas com dinheiro. O povo, portanto, trazia aos conventos e aos sacerdotes dinheiro e toda a coisa que tinha algum valor - galinhas, patos, gansos, ovos, cera, palha, manteiga e queijo. Então os hinos ressoavam, o sinos tocavam, o incenso enchia o santuário, os sacrifícios eram oferecidos, as despensas transbordavam, os copos circulavam e as missas finalizavam e encobriam estas piedosas orgias. Os bispos não pregavam mais, mas consagravam sacerdotes, sinos, monges, igrejas, capelas, imagens, livros e cemitérios; e tudo isto trazia um grande rendimento. Ossos, braços e pés eram preservados em caixas douradas e prateadas; eles eram entregues durante a missa para os fiéis beijarem, e isto também era uma fonte de grande lucro.'

'Todas estas pessoas sustentavam que o papa, 'sentando-se como Deus no templo de Deus', não podia errar, e elas não admitiriam qualquer contradição.'

Na igreja de Todos os Santos em Wittenberg foi mostrado um fragmento da arca de Noé, fuligem da fornalha dos Três Jovens, um pedaço de madeira da manjedoura de Jesus Cristo, um pelo da barba de São Cristovão e dezenove mil outras relíquias de maior ou menor valor. Em Schaffhausen foi exibido um sopro de São José que Nicodemos recebeu em sua luva. Em Wurtemberg podia-se encontrar um vendedor de indulgências, vendendo sua mercadoria, com sua cabeça adornada com uma grande pena arrancada da asa de São Miguel. Mas não era necessário viajar longe em busca destes preciosos tesouros. Os homens que cultivavam estas relíquias atravessavam o país inteiro, vendendo-as próximo aos distritos rurais (como já tinha acontecido com as Escrituras Sagradas) e levando-as às casas dos fiéis, para poupar-lhes o incômodo e a despesa de uma peregrinação. Eles eram exibidos com pompa nas igrejas. Estes vendedores ambulantes pagavam uma soma estipulada pelos proprietários das relíquias - uma percentagem de seus lucros. O reino do Céu tinha desaparecido, e em seu lugar um mercado de abominações tinha sido aberto sobre a Terra.

Assim um espírito de profanação tinha invadido a religião; e as mais santas recordações da Igreja, as ocasiões que mais particularmente convocavam os fiéis a santa meditação e amor, foram desgraçadas por bufonaria e profanação idólatra. As 'Celebrações da Páscoa' mantinham um distinguido lugar nos registros da Igreja. Como o festival da ressurreição de Cristo devia ser celebrado com alegria, os pregadores estudavam em seus sermões tudo o que pudesse suscitar o riso entre seus ouvintes. Um imitava a nota do cuco, outro grasnava como um ganso. Um arrastava para o altar um leigo vestido com o hábito de um monge; um segundo relatava as mais indecentes histórias; e um terceiro recontava os truques de São Pedro, e entre outros, como em uma taverna ele tinha enganado seu anfitrião não pagando sua conta. O baixo clero tirava vantagem desta oportunidade para ridicularizar seus superiores. As igrejas se convertiam em meros cenários para saltimbancos e os sacerdotes em bufões.

Se tal era o estado da religião, o que deve ter sido o estado da moralidade? ...

A doutrina e a venda de indulgências eram poderosos incentivos para o mal entre um povo ignorante. É verdade, de acordo com a Igreja, que as indulgências poderiam beneficiar apenas aqueles que prometiam emendar suas vidas, e que mantinham sua palavra. Mas o que poderia ser esperado de uma doutrina inventada somente com vistas ao lucro que poderia derivar dela? Os vendedores das indulgências eram tentados, para uma melhor venda de sua mercadoria, a apresentar seus artigos ao povo nos aspectos mais atrativos e sedutores. Os próprios instruídos não compreendiam plenamente a doutrina. Tudo o que a multidão via neles era que eles permitiam aos homens pecarem; e os mercadores não estavam demasiado ávidos em dissipar um erro tão favorável a suas vendas.

Que distúrbios e crimes foram cometidos nestas eras escuras, quando a impunidade era adquirida por dinheiro! O que tinha o homem a temer, quando uma pequena contribuição para construir uma igreja defendia-o do temor de punição no mundo por vir? Que esperança poderia haver de reavivamento quando toda comunicação entre Deus e o homem estava cortada, e o homem, alienado de Deus, que é o espírito e a vida, movia-se unicamente em um ciclo de cerimônias sem valor e observâncias sensuais, em uma atmosfera de morte!

Os sacerdotes eram os primeiros que cediam a esta influência corruptora. Desejando exaltaram-se tornavam-se degradados. Eles tinham almejado roubar a Deus de um raio de sua glória e colocá-lo em seu próprio seio, mas sua tentativa tinha-se provado vã, e eles tinham apenas escondido ali um fermento de corrupção roubado do poder do mal. A história da época abunda com escândalos. Em muitos lugares, o povo se deleitava em ver um sacerdote manter uma amante, para que as mulheres casadas pudessem estar seguras contra suas seduções. Que cenas humilhantes a casa de um pastor apresentava naqueles dias! O pobre homem sustentava a mulher e os filhos que ela lhe gerava com os dízimos e ofertas. Sua consciência era perturbada: ele corava na presença do povo, diante de seus empregados e perante Deus. A mãe, temedo vir a passar necessidade se o sacerdote morresse, fazia provisão contra isto de antemão, e roubava sua própria casa. Sua honra era perdida. Seus filhos eram sempre uma viva acusação contra ela. Desprezados por todos, eles mergulhavam em contendas e dissipação. Tal era a família do sacerdote! ..... Estas eram cenas terríveis, por meio das quais o povo sabia como beneficiar-se.

Os distritos rurais eram cenário de numerosos tumultos. As habitações do clero eram frequentemente esconderijos de corrupção. Corneille Adrian em Burges, o abade Trinkler em Cappel, imitavam os costumes do Oriente, e tinham seus próprios hárens. Sacerdotes, unindo-se a caráteres dissolutos, frequentavam as tavernas, jogavam dados, e coroavam suas orgias com disputas e blasfêmia. ...

Se formos adiante na ordem hierárquica, não encontraremos menor corrupção. Os dignitários da Igreja preferiam o tumulto dos campos aos hinos do altar. Ser capaz, com a lança na mão, de reduzir seus vizinhos a obediência era uma das principais qualificações de um bispo. Baldwin, arcebispo de Treves, estava continuamente em guerra com seus vizinhos e seus vassalos: ele demolia seus castelos, construia fortalezas e não pensava em nada a não ser na extensão de seu território.

Um certo bispo de Eichstadt, quando adminstrando a justiça, usava uma capa de correspondência sob seu manto, e tinha uma grande espada em sua mão. Ele costumava dizer que não temia cinco bavários, desde que eles não o atacassem a não ser em uma luta justa. Por toda a parte os bispos estavam continuamente em guerra com suas cidades. Os cidadãos exigiam liberdade, os bispos requeriam implicita obediência. Se os últimos ganhavam a vitória, puniam os revoltosos sacrificando numerosas vítimas à sua vingança; mas a chama da insurreição irrompia novamente, no mesmo momento em que se pensava estar extinguida.

E que espetáculo era apresentado pelo trono pontifical nos tempos que precederam imediatamente a Reforma! Roma, deveria-se reconhecer, tinha raramente testemunhado tanta infâmia.

Rodrigo Borgia, após ter vivido com uma senhora romana, tinha continuado a mesma ilícita ligação com uma de suas filhas, chamada Rosa Vanozza, com quem teve cinco filhos. Ele era cardeal e arcebispo, vivia em Roma com Vanozza e outras mulheres, visitando as igrejas e hospitais, quando a morte de Inocêncio VIII criou vaga na cadeira pontifical. Ele foi bem sucedido em obtê-la subornando cada cardeal a um preço estipulado. Quatro mulas carregadas com prata publicamente entraram no palácio de Sforza, um dos mais influentes dos cardeais. Borgia tornou-se papa sob o nome de Alexander VI, e regozijou-se em assim alcançar o ápice da felicidade terrestre.
" History of the Reformation of the Sixteenth Century, Livro 1, Capítulo 3.

Apesar das descrições acima, essa não era a totalidade do quadro religioso apresentado na Idade Média, conforme D'Aubigne:

"Roma mal havia usurpado o poder antes que forte oposição se formasse contra ela, a qual continuou ao longo dos Séculos Medievais.

O arcebispo Claudius de Turin, no nono século; Pierre de Bruys, seu discípulo Henry, e Arnold de Brescia, no décimo segundo século, na França e na Itália, trabalharam para restabelecer a adoração a Deus em espírito e em verdade; mas, no máximo, ele procuravam muito esta adoração na ausência de imagens e de observância externas. ...

Wickliffe se ergueu na Inglaterra em 1360, e apelou do papa para a palavra de Deus: mas a real ferida interna do corpo da Igreja era, aos seus olhos, apenas um dos numerosos sintomas da doença.

John Huss pregou na Boêmia um século antes de Lutero pregar na Saxônia. Ele parece ter penetrado mais fundo do que seus predecessores na essência da verdade cristã. Ele orava a Cristo por graça para gloriar-se somente em sua cruz e na inestimável humilhação de seus sofrimentos. Mas suas investidas foram menos diretas contra os erros da Igreja romana do que contra as vidas escandalosas do clero. Ele foi, todavia, se nos permitem a expressão, o João Batista da Reforma. As chamas de sua estaca acenderam um fogo na Igreja que lançou uma luz brilhante nas trevas circundantes, e cujas fagulhas não deviam ser prontamente extinguidas.

John Huss fez mais: palavras proféticas foram pronunciadas das profundezas de seu calabouço. Ele previu que uma real reforma da Igreja estava às portas. Quando expulso de Praga e compelido a vaguear pelos campos da Boêmia, onde uma imensa multidão seguia seus passos e esperava por suas palavras, ele exclamou: 'Os maus já começaram a preparar uma traiçoeira armadilha para o ganso. Mas se até o ganso, que é apenas uma ave doméstica, um animal pacífico, e cujo vôo não é muito alto no ar, tem apesar disso avançado mediante seus esforços, outras aves, ascendendo mais ousadamente para o céu, avançarão com ainda maior força. Ao invés de um débil ganso, a verdade expedirá águias e falcões de vista aguçada.' Esta predição foi cumprida pelos reformadores.

Quando o venerável sacerdote foi intimado pela ordem de Sigismund perante o concílio de Constance, e foi atirado na prisão, a capela de Bethlehem, na qual ele tinha proclamado o evangelho e os futuros triunfos de Cristo, ocupou sua mente, muito mais do que sua própria defesa. Em uma noite o santo mártir viu na imaginação, das profundezas de seu calabouço, as figuras de Cristo que ele tinha pintado nas paredes de seu oratório apagadas pelo papa e seus bispos. Esta visão afligiu-o: mas no dia seguinte ele viu muitos pintores ocupados em restaurar estas figuras em maior número e em mais brilhantes cores. Tão logo sua tarefa terminou, os pintores, que estavam rodeados por uma imensa multidão, exclamaram: Que agora venham os papas e bispos! eles nunca mais as apagarão! E muitas pessoas em Bethlehem se regozijaram, e eu com elas, acrescenta John Huss. - 'Ocupe-se com sua defesa ao invés do que com seus sonhos', disse seu fiel amigo, o cavaleiro de Chlum, a quem ele tinha comunicado a visão. 'Eu não sou um sonhador', replicou Huss, 'mas eu mantenho isto por certo, que a imagem de Cristo nunca será apagada. Eles têm desejado destrui-la, mas ela será pintada novamente em todos os corações por pregadores muito melhores do que eu. A nação que ama Cristo se regozijará com isto. E eu, despertando de entre os mortos, e erguendo-me, por assim dizer, de minha sepultura, saltarei com grande alegria.'

Um século se passou; e a tocha do evangelho, acesa novamente pelos reformadores, iluminou verdadeiramente muitas nações, que se regozijaram em seu brilho. ...

Anselmo de Canterbury estabeleceu como a própria essência do Cristianismo as doutrinas da encarnação e expiação, e em uma obra em que ele ensina-nos como morrer, ele diz para a alma que está partindo: 'Confie apenas nos méritos de Jesus Cristo.' São Bernardo proclamou com poderosa voz os mistérios da Redenção. 'Se meu pecado veio de outro', ele diz, 'por que minha justiça não me seria concedida da mesma maneira? Seguramente é melhor para mim que ela me seja dada, do que se ela fosse inata.' Muitos escolásticos, e em tempos anteriores, o Chanceler Gérson, vigorasamente atacaram os erros e abusos da Igreja.

Mas reflitamos, acima de tudo, acerca das milhares de almas, obscuras e desconhecidas ao mundo, foram, não obstante, participantes da verdadeira vida de Cristo.

Um monge chamado Arnoldi apresentava, cada dia, esta fervente oração em sua cela silenciosa: 'Oh! Senhor Jesus Cristo! Eu creio que somente tu és minha redenção e minha justiça.' Christopher de Utenheim, um piedoso bispo de Basel, tinha seu nome inscrito em uma pintura pintada em vidro, a qual está ainda naquela cidade, e cercou-o com este lema, que ele desejava ter continuamente diante de seus olhos: 'Minha esperança está na cruz de Cristo; eu busco a graça e não as obras.'

Um pobre frade cartusiano, chamado Martin, escreveu uma tocante confissão, na qual ele diz: 'Oh! misericordioso Deus! eu sei que eu não posso ser salvo e satisfazer tua justiça de outro modo que não seja pelos méritos, pela inocente paixão, e pela morte de teu querido e amado Filho. ... Santo Jesus! toda a minha salvação está em tuas mãos. Tu não podes afastar-me das mãos de teu amor, pois elas me criaram, formaram-me, e me redimiram. Tu tens escrito meu nome com uma pena de ferro, com grande misericórdia e de maneira indelével, no teu lado, em tuas mãos e em teus pés,' etc.etc. Então o bom cartusiano colocou sua confissão em uma caixa de madeira, e encerrou-a em um buraco que ele tinha feito na parede de sua cela.

A piedade do irmão Martin nunca teria sido conhecida, se a caixa não tivesse sido descoberta em 21 de dezembro de 1776, quando alguns trabalhadores estavam derrubando uma velha construção que tinha sido parte do convento cartusiano em Basel. Quantos conventos não poderiam ter encoberto tais tesouros! ...

Thomas Conecte, um frade carmelita, apareceu em Flanders. Ele declarou que 'as mais grosseiras abominações eram praticadas em Roma, que a Igreja requeria uma reforma, e que conquanto sirvamos a Deus, não devemos temer as excomunhões do papa.' O país inteiro escutou com entusiasmo; Roma condenou-o à estaca em 1432, e seus contemporâneos declararam que ele tinha sido transladado para o Céu.

O cardeal Andrew, arcebispo de Crayn, sendo enviado a Roma como o embaixador do imperador, foi tomado de consternação ao descobrir que a santidade papal, em que ele cria devotamente, era mera ficção; e em sua simplicidade dirigiu-se a Sixtus IV em linguagem de objeção evangélica. A zombaria e a perseguição foram sua única resposta. Por isto ele se esforçou para reunir, em 1482, um novo concílio em Basel. 'A igreja inteira', disse ele, 'está sacudida por divisões, heresias, pecados, vícios, injustiça, erros, e males sem conta, bem como está prestes a ser engolida pelo abismo devorador da danação. Por este motivo nós proclamamos um concílio geral para a reforma da fé católica e a purificação da moralidade.' O arcebispo foi lançado na prisão em Basel, onde ele morreu. O inquisidor, Henry Institoris, que foi o primeiro a se opor a ele, pronunciou estas notáveis palavras: "Todo o mundo clama e exige um concílio; mas não existe poder humano que possa reformar a Igreja por um concílio. O Altíssimo encontrará outros meios, que presentemente são desconhecidos para nós, embora possam estar às portas, para trazer de volta a Igreja a sua condição primitiva.' Esta notável profecia, comunicada por um inquisidor, no próprio período do nascimento de Lutero, é a melhor apologia para a Reforma.

Jerome Savonarola, logo após entrar na ordem Dominicana em Bologna em 1475, devotou-se a contínuas orações, jejuns e mortificações, e clamava: 'Tu, ó Deus, és bom, e em tua bondade ensina-me tua justiça.' Ele pregou com energia em Florença, cidade para qual havia-se mudado em 1489. Sua voz levava convicção; seu semblante era iluminado por entusiasmo; e sua atitude possuía encantadora graça. 'Devemos regenerar a Igreja', disse ele, e ele professava o grande princípio que unicamente poderia efetuar esta regeneração. 'Deus', ele exclamou, 'redime os pecados dos homens e justifica-os por sua graça. Há tanta compaixão no Céu quanto homens justificados sobre a Terra, pois ninguém é salvo por suas próprias obras. Nenhum homem pode vangloriar-se; e se, na presença de Deus, pudéssemos perguntar a todos estes pecadores justificados: -Você foi salvo por sua própria força? - todos responderiam em uma voz: Não a nós, ó Senhor! não a nós, mas ao teu nome seja a glória! - Portanto, ó Deus, eu busco a tua graça, e te trago não a minha própria justiça, mas quando por tua graça me justificas, então tua justiça me pertence, pois a graça é a justiça de Deus. -Enquanto, ó homem, enquanto tu não crês, tu és, por causa de teu pecado, destituido da graça. -Ó Deus,salva-me por tua justiça, quer dizer, em teu Filho, único entre os homem que foi achado sem pecado!' Assim a grandiosa e santa doutrina da justificação pela fé alegrava o coração de Savonarola. Em vão os que presidiam a Igreja se opuseram a ele; ele sabia que os oráculos de Deus estavam muito acima da Igreja visível, e que ele devia proclamar estes oráculos com o auxílio da Igreja, sem ele, ou mesmo a despeito dela. 'Fuja', clamava ele, 'fuja para longe de Babilônia!' e foi Roma a quem ele designou assim, e Roma em breve respondeu em sua maneira usual. Em 1497, o infame Alexander VI emitiu uma ordem contra ele; e em 1498, a tortura e a estaca terminaram com a vida deste reformador. ...

'Um monge chamado Jonh Hilten foi um interno do convento franciscano em Eisenach, na Turíngia. As profecias de Daniel e o Apocalipse de São João eram seu estudo especial. Ele até escreveu um comentário sobre estas obras, e censurou os mais flagrantes abusos da vida monástica. Os monges exasperados atiraram-no na prisão. Sua avançada idade e a imundície do calabouço causaram-lhe uma perigosa doença: ele chamou o superior, e o último, mal tendo chegado perante ele, explodiu em violenta paixão, e sem ouvir as queixa do prisioneiro, amargamente acusou sua doutrina, que se opunha, acrescenta a crônica, a cozinha dos monges. O franciscano esquecendo sua enfermidade e suspirando pesadamente, respondeu: 'Eu suporto seus insultos calmamente por amor de Cristo, pois não tenho dito nada que possa por em perigo a situação monástica: tenho apenas censurado seus mais notórios abusos. mas, continuou ele (de acordo com o que Melancthon registra em sua Apologia da Confissão de Fé de Augsburg), 'outro homem surgirá no ano de nosso Senhor de 1516: ele vos destruirá, e não sereis capazes de resistir-lhe.' John Hilten, que tinha profetizado que o fim do mundo viria em 1651, estava menos enganado ao indicar o ano em que o futuro reformador apareceria. Não muito tempo depois, ele nasceu em uma pequena vila a uma pequena distância do calabouço do monge: nesta mesma cidade de Eisenach ele iniciou seus estudos, e somente um ano mais tarde do que o frade aprisionado tinha declarado, ele publicamente iniciou a Reforma.
" History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 1, capítulo 6, J.H. Merle D'Aubigne.