quarta-feira, 9 de junho de 2010

A Origem da Vida e seus Pesquisadores

Algumas coisas que se ouvem muito nos meios acadêmicos, em centros de pesquisa e são bastante propagadas por revistas de divulgação científica, são que a Evolução é um fato, que crer em Deus e em Criacionismo é uma coisa para ignorantes, porque Deus e Criacionismo não podem ser estudados de forma racional, etc.

Bem, se a evolução é um fato, segundo dicionários de português, ela é real,verdadeira, algo que acontece. Acho que hoje em dia ninguém (ou pelo menos quase ninguém) discorda de que ocorrem mutações nos seres vivos, de que eles se adaptam, enfim ... A maioria das pessoas pensantes também percebe que a seleção natural faz bastante sentido. A questão é que a Síntese Evolutiva Moderna agrega muito mais idéias além destas, você precisa aceitar que houve um ancestral comum para todas as espécies de seres vivos que existem sobre a Terra. E ai eu encontro mais duas palavras problemáticas que não foram até hoje bem definidas e sobre as quais não existe consenso entre os cientistas, que seriam: vida e espécie. Para a última existem pelo menos umas 3 definições: o conceito evolutivo, o filogenético e o biológico. A última é mais difundida, mais aceita, mas existem várias exceções para ela e isto, para mim, significa que a definição ainda não ficou boa.

Tudo bem, deixando de lado as definições, se querem que algo seja aceito como fato, coisa real, verdadeira, e se a Evolução pode ser estudada cientificamente, então tem que poder acontecer duas coisas: primeira, se é um fato tem de poder ser observada e, segundo, se pode ser comprovada cientificamente tem de poder se comprovar pelo método científico com a exclusão de qualquer outra hipótese. O primeiro teste é simples: Se houve um ancestral comum e se ele se originou da primeira molécula ou conjunto de compostos que deram origem a vida, então tem de ser possível se observar isto. E o problema com fatos é que não se pode afirmá-los quando ocorreram no passado e ninguém estava lá para ver.

Comprovar uma hipótese que não pode ser acessada diretamente também é difícil, porque se a origem da vida for reproduzida em laboratório, quem garante que foi assim mesmo que aconteceu?

Por falar nisso, como fica a origem da vida em laboratório, sim, porque como disse Robert Shapiro, um pesquisador que crê que a origem da vida foi através de metabolismo primeiro: "Em contraste, nenhum nucleotídeo de qualquer tipo foi relatado como produto de experimentos com discarga de faíscas ou em estudos de meteoritos, nem as unidades menores (nucleosídeos) que contêm um açúcar e base, mas falta o fosfato. Para resgatar o conceito de RNA-primeiro deste, normalmente, defeito letal, seus defensores criaram uma disciplina chamada síntese prebiótica. Eles têm tentado demonstrar que RNA e seus componentes podem ser preparados em seus laboratórios em uma sequência de reações cuidadosamente controladas, normalmente realizadas em água a temperaturas observadas na Terra. Tal sequência inicia usualmente com compostos de carbono que tenham sido produzidos em experimentos com discarga de faíscas ou encontrados em meteoritos. A observação de um composto químico orgânico específico em qualquer quantidade (mesmo como parte de uma mistura complexa) em uma das fontes acima justifica sua classificação como "prebiótico", uma substância que supostamente se provou estar presente na Terra primitiva. Uma vez tendo recebido esta distinção, o produto químico pode então ser usado na forma pura, em qualquer quantidade, em outra reação prebiótica. Os produtos de tais reações também serão considerados "prebióticos" e empregados no próximo passo da sequência. O uso de sequẽncias de reações deste tipo (sem qualquer referência à origem da vida) tem há muito sido uma prática honrada no campo tradicional da química orgânica sintética. Meu próprio orientador da tese de PhD, Robert B. Woodward, recebeu o Prêmio Nobel por sua brilhante síntese de quinino, colesterol, clorofila e muitas outras substâncias. Pouco importa se quilogramas de material inicial foram necessários para produzir miligramas de produto. O ponto foi a demonstração de que seres humanos podem produzir, ainda que ineficientemente, substâncias encontradas na natureza. Infelizmente, nem químicos nem laboratórios estavam presentes na Terra primitiva para produzir RNA." Robert Shapiro, ""A simpler origin for life", Scientific American, 12 de fevereiro de 2007.

Outro ponto: se crer em Deus é um viés que impede o estudo racional do assunto sobre as origens, como fica a declaração abaixo (feita por ninguém menos do que Freeman Dyson):
"A descrição de Oparin foi geralmente aceita pelos biólogos por meio século. Ela era popular não porque houvesse qualquer evidência para apoiá-la, mas antes porque parecia ser a única alternativa para o criacionismo bíblico." Freeman Dyson, "Origins of Life", p. 38.

Racionalidade, objetividade, sem comentários ...

Eu admiro Darwin (criacionistas e evolucionistas me apedrejariam por isto), ele foi honesto na forma de colocar suas idéias, teve um insight brilhante quando percebeu que as espécies se modificavam e foi metódico ao documentar isto. Ele sabia que havia falhas no seu trabalho e ele admitiu isto na introdução de seu livro. Infelizmente, as pessoas não lêem atentamente o livro dele (ou nem lêem) e idolatram a imagem que fizeram dele.

Uma vez em uma palestra sobre origem da vida alguém me disse que origem da vida não faz parte da Teoria da Evolução. Tudo bem, só tem uma coisinha: sem origem da vida não tem ancestral comum, sem ancestral comum não existe origem das espécies. Voltando a origem da vida, Leslie Orgel, que foi uma espécie de pai da idéia do mundo de RNA primitivo, passou grande parte de sua vida pesquisando sobre o assunto, e morreu em 2007, disse o seguinte em um artigo que encontrei no site da Nasa anteriormente (agora pode ser encontrado no seguinte link http://eddieting.com/eng/originoflife/orgel.html):

"A hipótese mais simples presume que os nucleotídeos no RNA se formaram quando reações químicas diretas levaram a união do açúcar ribose com bases dos ácidos nucléicos e fosfato (que estaria disponível no material inorgânico). Este cenário é atrativo mas, como será visto, tem-se provado difícil de confirmar. ...)". E ele prossegue relatando todas as dificuldades.

Gerald Joyce, que foi orientado por Orgel em seu doutorado, e é também pesquisador da origem da vida através da molécula de RNA ou algum precursor semelhante, disse o seguinte em um artigo publicado na Nature em 2002:

“O principal obstá́culo para se entender a origem da vida baseada em RNA é identificar um mecanismo plausível para vencer a bagunça produzida pela química prebiótica” Gerald F. Joyce, "The antiquity of RNA-based evolution" Nature, 11 de julho de 2002.

Shapiro faz algumas considerações interessantes em um artigo publicado em 2007 na Scientific American:

“A analogia que vem a mente é a de um jogador de golfe, que tendo jogado uma bola através de uma rota de 18 buracos, então presume que a bola também jogaria a si mesma por esta rota na ausência dele. Ele demonstrou a possibilidade do evento; só é necessário imaginar que alguma combinação de forças naturais (terremotos, ventos, tornados e inundações, por exemplo) poderiam produzir o mesmo resultado, dado tempo suficiente. Nenhuma lei física precisa ser violada para a formação espontânea de RNA acontecer, mas as chances contra isto são imensas, implica em que o mundo não vivo tem um desejo inato de gerar RNA. A maioria dos cientistas da origem da vida que ainda apoia a teoria do RNA primeiro ou aceita este conceito (implicita, se não explicitamente) ou acha que as chances imensamente desfavoráveis foram simplesmente vencidas por boa sorte.”
“Imagine um gorila (braços muito longos são necessários) em um imenso teclado conectado a um processador de palavras. O teclado contém não apenas os símbolos usados nas linguagens inglesa e européia, mas também um enorme excesso extraído de todas as outras linguagens conhecidas e todos os conjuntos de símbolos armazenados em um típico computador. As chances de uma reunião espontânea de um replicador no ‘pool’ que eu descrevi acima pode ser comparada àquelas do gorila compor, em inglês, uma receita coerente de chili com carne. Com considerações semelhantes em mente, Gerald F. Joyce do Scripps Research Institute e Leslie Orgel do Salk Institute concluiram que o aparecimento espontâneo de cadeias de RNA na terra sem vida ‘teria sido um quase milagre’. Eu estenderia esta conclusão a todos os propostos substitutos de RNA que mencionei acima.” Robert Shapiro, "A simpler origin for life", Scientific American, 12 de fevereiro de 2007.

A observação de Shapiro, de que "só é necessário imaginar que alguma combinação de forças naturais (terremotos, ventos, tornados e inundações, por exemplo) poderiam produzir o mesmo resultado, dado tempo suficiente" me veio a mente quando estava lendo o artigo publicado na Nature, no ano passado, sobre a síntese de nucleotídeos de pirimidina e que foi divulgado como algo que deixou a origem da vida por RNA bem próxima de se comprovar. No final do artigo aparecem as seguintes considerações:

"Embora a questão de fornecimentos temporalmente separados de glicolaldeído e gliceraldeído permaneça um problema, uma variedade de situações poderia ter surgido que resultaria nas condições de aquecimento e progressiva desidratação seguida de congelamento, reidratação e irradiação ultavioleta." Matthew W. Powner, Beatrice Gerland e John D. Sutherland, "Synthesis of activated pyrimidine ribonucleotides in prebiotically plausible conditions", Nature, 14 de maio de 2009. É poderia ... não é impossível, como disse Shapiro. Acho que provar que algo é impossível é bem difícil, inclusive que Deus não existe.

Shapiro acredita que um ciclo composto por moléculas bem mais simples que nucletídeos poderia ter dado origem a uma espécie de ciclo metabólico pouco sofisticado que teria a capacidade de se reproduzir e suportar seleção natural. Outros pesquisadores partilham de idéias semelhantes, um deles, Günter Wächtershäuser, propôs um ciclo que considerou simples, o ciclo do ácido cítrico reverso, um ciclo autocatalítico, ou seja, as próprias moléculas carreadoras do ciclo servem como catalisadoras das reações. Em 200O, Orgel publicou um artigo sobre este tipo de ciclo (porque ciclos do tipo autocatalílico eram uma proposta comum entre defensores do metabolismo primeiro na origem da vida):

“Postular um reção catalisada ao acaso, talvez por um íon metálico, pode ser razoável, mas postular um conjunto delas é apelar para a magia.” Leslie E. Orgel, "Self-organizing biochemical cycles" Leslie E. Orgel, PNAS, 7 de novembro de 2000.

Mas em janeiro deste ano uma pesquisa publicada pareceu dar um "xeque mate" na proposta de metabolismo primeiro na origem da vida:

"Em agudo contraste com a dinâmica da replicação dependente de molde, demonstramos aqui que a replicação da informação de compostos é tão imprecisa que os mais ajustados genomas de compostos não se mantêm pela seleção e, portanto, falta-lhes capacidade de evolução (isto é, não podem substancialmente se afastar da solução steady-state assintótica já embutida nas equações dinâmicas). Concluímos que esta limitação fundamental de conjuntos de replicadores adverte contra teorias de origem da vida de metabolismo primeiro, embora sistemas metabólicos antigos possam ter providenciado habitat estável dentro do qual replicadores poliméricos mais tarde evoluiram." Vera Vasas, Eörs Szathmáry e Mauro Santos, "Lack of evolvability in self-sustaining autocatalytic networks constraints metabolism-first scenarios for the origin of life", PNAS, 26 de janeiro de 2010.

Contudo, eu não apostaria que os defensores do metabolismo primeiro na origem da vida vão desistir assim tão fácil, afinal, os proponentes do "Mundo de RNA" continuam suas pesquisas nesta linha apesar de todos os viéses e críticas. Seria porque alguma destas hipóteses "tem que" funcionar de qualquer jeito para não se pensar em "criacionismo bíblico", como disse Dyson?

Por favor, a origem da vida e o ancestral comum, seja lá como possam ter sido, é algo que aconteceu no passado, é algo intangível, tão intangível quanto Deus. Agora, se podemos rastrear as evidências de algo que aconteceu em um passado impalpável, por que não podemos rastrear Deus da mesma forma? "Não, mas estudar a origem química da vida é uma coisa racional, não influenciada por crenças pessoais (contanto, que exclua Deus)."

Uma vez eu vi uma charge, em uma revista, em que um homem caminhava com uma bengala e uma Bíblia no rosto tapando seus olhos. E é verdade, muita gente usa a Bíblia como desculpa para não estudar e entender a natureza. É verdade também, com frequência, que estas pessoas não estudam a Bíblia também, mas permitem que outros que se consideram versados na Bíblia os guiem e lhes dirijam as crenças sobre o que a Bíblia ensina. Bem, e se mudássemos apenas um detalhe nesta figura? E se ao invés da Bíblia fosse o "Origem das Espécies"? Isto se pareceria com alguma coisa que acontece na realidade?